domingo, 20 de dezembro de 2015

Donos da razão

- O Pai Natal, não existe. – diz-me arrogante como se eu fosse burro.
- Existe, existe! – respondo, incrédulo.
- Tu é que és burro! – diz-me aquele pirralho.
- Não! Tu é que és burro.
- Tu é que és!Seu nabo!
- Se eu sou nabo, tu és burro e nabo!
Enquanto nos gladiávamos com palavras, os corpos iam-se aproximando.
- Tu é que és burro e nabo!
- Seu burr…
E os corpos encostam-se e a gadulha começa!
Em criança era assim que no recreio da escola, decidíamos quem tinha razão. Sem a arte do argumento, quem tinha razão era o mais forte, ou mais gordo…eu nesse tempo tinha a vantagem do peso sobre os outros meninos e quase sempre tinha razão, como nesse dia! O Miguel, ao sentir os meus quilos de chicha, voltou a acreditar no Pai Natal.
Apesar de ser por volta dessa altura que começámos a ter as nossas tendências profissionais, e a escolha recaía, invariavelmente, sobre ser piloto de rallies, jogador da bola, polícia, bombeiro, eu cá queria ser alpinista, fruto do encanto de um programa que dava aos sábados à tarde, que se chamava “A conquista do Everest” e conheci um miúdo que queria ser palhaço, mas o que todos inconscientemente queríamos era simplesmente...ter razão!
Era de prever que com o tempo, o caminho estreito e correcto para a busca da razão fosse encontrado…mas ao que parece, continua desconhecido. Para o Miguel isso pouco importa porque aquela lição na primária fez-lhe encontrar a ilusão de ter razão, não defendendo nada, apenas descredibilizando os outros…é agora um importante líder parlamentar e continua a acreditar no Pai Natal!
Mas passados muitos anos, eu e uma grande maioria, que já não acreditamos no Pai Natal, continuamos a rondar a Razão, usando fórmulas, quase ou tão infantis como as usadas em criança. Há quem A puxe para si, falando mais alto e por cima dos outros ou quem os diminua nas suas capacidades físicas (esta é a minha fórmula preferida e ontem fiz uso dela).
Estava num jogo de bola e vendo o caso mal parado, quando sofro uma falta a meio-campo, peço penalty. Perante a gargalhada do adversário, chamei-os de cegos…e convenci-os disso! O penalty foi marcado mas, com razão, fiquei chateado com a falta de seriedade do adversário.
Para me animar, um amigo de equipa, diz-me, “No fim, vou levar-te a um sítio!”.
Arrancámos e andámos muito, não sei o nome do local, mas era bem longe da Trofa e completamente estranho. À entrada do edifício, por cima da porta, uma faixa com a inscrição “Speed Dating com a Razão”, que não deixava dúvidas de que não estava num restaurante…que pena, estava cheio de fome. Entro e rapidamente me apercebo de que a sala está cheia, vou passando os olhos pelas caras e conheço muitas delas, principalmente do Facebook, que se indignam ferozmente nas redes sociais com qualquer contrariedade como se isso lhes valesse a Razão…deixei-me estar num cantinho.
Os encontros, apesar de rápidos, fizeram-me esperar muito tempo. Fui o último a entrar na sala onde iria ter a minha hipótese com a Razão. Sentei-me e Ela olhava para mim sem nenhum tipo de cansaço na expressão, ao contrário de mim, e olhava-me serena e firme. Tentei disfarçar a insegurança e lancei um olhar sensual, treinado em casa desde há muito tempo, e uma posse igualmente fabricada, cujo binómio julgo irresistível! Ela fez um sorriso triste, apercebendo-se da falsidade da pose, que de seguida fechou e de expressão imóvel cai-lhe uma lágrima pelo rosto. Percebi que aquela lágrima não era por mim, mas por todos que lá passaram, e não A conseguiram seduzir!
Saio da sala e ao fechar a porta, volto a olhá-La e vejo-A abraçada à Racionalidade.

Vim embora a pensar se os outros teriam visto o mesmo que eu!

domingo, 13 de dezembro de 2015

Adivinhação

Apesar de nunca me ter sentido apto a “capacidades do Além” e de nunca arriscar, durante anos, dizer que sim, quando me perguntavam se achava que o meu clube ia ganhar (sou sportinguista), há muito boa gente, e quando digo boa gente, é-o mesmo, que num toque de “eu sou mesmo interessante”, tenta prever “o que vem a seguir”, como se lhes conferisse um toque de sofisticação e inteligência!
Também assim o fui, em criança, quando teimava em terminar as frases da minha professora Maria Luísa:
- Está na hora... – e cortando-lhe a frase, completava.
- ...Do recreio. – e sorria para ela.
- Isso mesmo Zé! Muito bem! – respondia-me, paciente.
E os meus olhos atravessavam o resto da turma com um sorriso, como que dizendo, “Eu é que sou fino”.
Mudei sem saber se melhorei e comecei a deixar as pessoas falar até ao fim, e de extraordinário...bem, a minha mãe, sem eu saber porquê, está convencida e pensa que me convenceu, de que sou muito bom a escolher melões, sem olhar para o seu interior, e dizer se estão bons ou não! Nunca desmenti tal incapacidade e agora não tenho coragem para lhe revelar a verdade!
Hoje à tarde:
- Ò pá, eu tinha a bola nos pés, finto um, finto outro, driblo o guarda-redes...
- E marcas-te um grande golo!
- Não, pá! Não sei como, mas torci o pé e chutei a bola ao lado! O jogo parou e eu não conseguia jogar...
- E a tua equipa jogou com menos um. Que chatice!
- Não! Fui para a baliza. Agora, tenho que ter paciência, a andar dói-me...
- Muito, dói-te muito. É natural!
- Pouco. Dói-me pouco. Mas amanhã já...
- Vais ao massagista. Fazes bem, se quiseres indico-te um muito bom que...
- AMANHÃ, vou jogar outra vez. Vou ligar bem o pé e vou JOGAR OUTRA VEZ. – respondo ao meu bom conhecido em tom “viçoso”, recuperando a característica de criança, quando terminava as frases da minha professora, sem ela ter pedido.
- Pronto, está bem, mas deixa-me terminar! – diz-me o meu bom conhecido, incomodado pela interrupção - Se precisares conheço um massagista muito bom e não leva caro. E então, amanhã vais jogar com quem?
- Olha! Vou jogar com o Nando...
- Ele joga bem, não joga?
- Nem por isso! É um marreta. Também joga o Sequeira...
- O Sequeira é um bocado marreta, não é?!
- Não. O Sequeira joga bem! Também joga o meu irmão...
E desta vez não sou interrompido pelo bom conhecido, mas pelo toque do telefone.
- É uma admiradora? – pergunta-me, sem ter acertado, mais uma vez!
“Só me restam saudades”, pensei, e respondi-lhe – É a minha mãe. Espera um bocadinho, vou atender.
Após o telefonema.
- Ó Meireles, tenho que ir. A minha mãe...
- Tens que ir buscá-la. Fazes bem, Mãe só há uma!
- Não pá! Pediu-me para ir ter com ela à frutaria para escolher dois melões!

domingo, 6 de dezembro de 2015

Dependências

Suzy, de 36 anos, sempre de hábitos simples, nunca teve nenhuma dependência. Em miúda, um dia o pai perguntou-lhe: – Filha, queres uma carteira de cromos da “Candy”?
- Não meu pai! Eu bem vejo como estão as minhas amigas, drógadas pelos cromos!
Esta simplicidade, desprendida de vícios, que sempre pautou a vida de Suzy, acabaria por mudar, quando há três anos atrás comenta com uma colega da confecção - Ninguém gosta de mim!
- Suzy, “gostar” é tão parolo como a saia travada com folhos que usas! O que interessa são os “likes”! – responde a colega de Suzy, com a mão em posição de quem pede boleia.
Depois de devidamente instruída, dois dias após, Suzy já tem um computador pessoal, uma conta aberta no Facebook e três saias novas, mandadas fazer numa modista amiga dela, muito jeitosa. Ao fim de 5 meses, já tem 4136 amigos, dos quais, pessoalmente, apenas conhece a colega de confecção, e 7 seguidores.
São 7 horas da manhã, o despertador toca. Estremunhada, Suzy acorda e abre o computador, com o qual dorme, pousado a seu lado. No Facebook “posta”: “Ui, ui, que soninho! Lol”.
Espera ansiosa, antes de sair da cama, por um “like”…que acontece ao fim de 15 minutos e que lhe soube melhor do que um café! Pincha da cama, lava os dentes sem ter tomado o pequeno-almoço, pelo atraso do “like”. Entra no carro, arranca e pára 50 metros à frente porque se esqueceu de colocar o cinto. Antes de o colocar, através do telemóvel, “posta” no Facebook: “Helloooo, arranquei sem pôr o cinto! ;-)”. Ao fim de 34 minutos recebe o primeiro “like” e de seguida um segundo…Animada, coloca o cinto e arranca.
Suzy chega atrasada à confecção. Antes de “picar” para dar início ao trabalho, “posta” novamente no Face: “Migos e migas, estou triste. Por mais cedo que me levante, nunca chego a horas ao trabalho! ”. Recebe novo “like” ao fim de 20 minutos, dando-lhe força para “picar” e avançar firme, com mais 20 minutos de atraso, para a sua “corta e cose” Siemens.
O resto do dia segue de forma costumeira, com “posts” frequentes e a espera ansiosa por um “like”.
À noite, no regresso a casa, tem um furo no pneu. Animadita, “posta” no Face: “Que chatice, tive o meu primeiro furo!”
Nesse momento, Guedes, mecânico e amigo facebookiano, distraidamente, faz “like”, enquanto passa, a pé, por Suzy, que se mantém de olhos postos no telemóvel. Estão alheios à existência um do outro!
Suzy chega a casa. O cansaço é superior à fome e decide por isso deitar-se, mas não sem antes partilhar com o mundo: “Mudei um pneu, estou cansada e vou dormir!”
Antes de “mergulhar” na cama, Suzy, espera pelo consentimento supremo de um “like” de um desconhecido qualquer, feito amigo, ao alcance de um click!
Passa uma hora, duas, ninguém responde…são cinco da manhã. Suzy desespera, em pé, ao lado da cama pelo primeiro “like”, para se deixar tombar…Seis da manhã, sete… e o despertador toca sem que Suzy se tenha deitado!
Em vez de tomar o caminho do trabalho, Suzy segue directa para o psiquiatra.
Exausta, explica a razão de uma noite sem dormir. Dada a gravidade da situação, o médico faz um pedido de amizade a Suzy e receita-lhe:
- Menina Suzy, quando chegar a casa, aceite o meu pedido de amizade! Iniciado o tratamento, faço imediatamente dez “likes” na sua página, para poder dormir. A partir de amanhã, os “likes” serão de 8 em 8 horas, se não for suficiente aumentamos a dose para “likes” de 6 em 6.

Pior do que perder uma Nação é perder a soberania individual!