- O Pai Natal, não existe.
– diz-me arrogante como se eu fosse burro.
- Existe, existe! –
respondo, incrédulo.
- Tu é que és burro! –
diz-me aquele pirralho.
- Não! Tu é que és burro.
- Tu é que és!Seu nabo!
- Se eu sou nabo, tu és
burro e nabo!
Enquanto nos gladiávamos
com palavras, os corpos iam-se aproximando.
- Tu é que és burro e
nabo!
- Seu burr…
E os corpos encostam-se e
a gadulha começa!
Em criança era assim que
no recreio da escola, decidíamos quem tinha razão. Sem a arte do argumento,
quem tinha razão era o mais forte, ou mais gordo…eu nesse tempo tinha a
vantagem do peso sobre os outros meninos e quase sempre tinha razão, como nesse
dia! O Miguel, ao sentir os meus quilos de chicha, voltou a acreditar no Pai
Natal.
Apesar de ser por volta
dessa altura que começámos a ter as nossas tendências profissionais, e a
escolha recaía, invariavelmente, sobre ser piloto de rallies, jogador da bola,
polícia, bombeiro, eu cá queria ser alpinista, fruto do encanto de um programa
que dava aos sábados à tarde, que se chamava “A conquista do Everest” e conheci
um miúdo que queria ser palhaço, mas o que todos inconscientemente queríamos
era simplesmente...ter razão!
Era de prever que com o
tempo, o caminho estreito e correcto para a busca da razão fosse encontrado…mas
ao que parece, continua desconhecido. Para o Miguel isso pouco importa porque
aquela lição na primária fez-lhe encontrar a ilusão de ter razão, não
defendendo nada, apenas descredibilizando os outros…é agora um importante líder
parlamentar e continua a acreditar no Pai Natal!
Mas passados muitos anos,
eu e uma grande maioria, que já não acreditamos no Pai Natal, continuamos a
rondar a Razão, usando fórmulas, quase ou tão infantis como as usadas em
criança. Há quem A puxe para si,
falando mais alto e por cima dos outros ou quem os diminua nas suas capacidades
físicas (esta é a minha fórmula preferida e ontem fiz uso dela).
Estava num jogo de bola e
vendo o caso mal parado, quando sofro uma falta a meio-campo, peço penalty.
Perante a gargalhada do adversário, chamei-os de cegos…e convenci-os disso! O
penalty foi marcado mas, com razão, fiquei chateado com a falta de seriedade do
adversário.
Para me animar, um amigo
de equipa, diz-me, “No fim, vou levar-te a um sítio!”.
Arrancámos e andámos
muito, não sei o nome do local, mas era bem longe da Trofa e completamente
estranho. À entrada do edifício, por cima da porta, uma faixa com a inscrição
“Speed Dating com a Razão”, que não deixava dúvidas de que não estava num
restaurante…que pena, estava cheio de fome. Entro e rapidamente me apercebo de
que a sala está cheia, vou passando os olhos pelas caras e conheço
muitas delas, principalmente do Facebook, que se indignam ferozmente nas redes
sociais com qualquer contrariedade como se isso lhes valesse a Razão…deixei-me
estar num cantinho.
Os encontros, apesar de
rápidos, fizeram-me esperar muito tempo. Fui o último a entrar na sala onde
iria ter a minha hipótese com a Razão. Sentei-me e Ela olhava para mim sem
nenhum tipo de cansaço na expressão, ao contrário de mim, e olhava-me serena e
firme. Tentei disfarçar a insegurança e lancei um olhar sensual, treinado em
casa desde há muito tempo, e uma posse igualmente fabricada, cujo binómio julgo
irresistível! Ela fez um sorriso triste, apercebendo-se da falsidade da pose,
que de seguida fechou e de expressão imóvel cai-lhe uma lágrima pelo rosto.
Percebi que aquela lágrima não era por mim, mas por todos que lá passaram, e
não A conseguiram seduzir!
Saio da sala e ao fechar a
porta, volto a olhá-La e vejo-A abraçada à Racionalidade.
Vim embora a pensar se os
outros teriam visto o mesmo que eu!