segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Adélio Dani (8º episódio)

Nasce um novo dia e bem cedo, Augusto, o chefe de família, é o primeiro a sair. Ia embarcar numa nova aventura e distante, ia para a pesca do bacalhau, nos mares do norte.
Enquanto os outros dormem:
- Ó mulher, já vou, dá-me um beijinho.
- Aaahhh, que horas são?
- São seis da manhã!
- Deixa-me dormir! – Responde Dália, virando-se na cama e ficando de costas para Augusto.
- Nem um beijinho?! Eu vou estar fora três semanas!
- Aaahhh, não te esqueças de fechar a porta! – Diz Dália, mais a dormir do que acordada.
Augusto sai do seu quarto e vai à arrecadação da casa, onde dorme o seu filho Adélio.
- Adélio, Adélio, acorda filho. Já vou para a faina, dá-me um abraço!
Adélio acorda completamente estremunhado e assustado. Quando se apercebe de um vulto no seu quarto, pensa tratar-se do chefe dos escuteiros e diz: – Rubi, ataca! – E deixa-se cair novamente na cama!
Augusto é corrido da sua própria casa, por Rubi, o fiel amigo e proctetor do filho.
Ferido no coração, com o tratamento que teve por parte da família, Augusto em vez de embarcar, foi para a Areosa, onde mora o seu melhor amigo, Zé Kalanga, um angolano que conheceu ainda nos tempos do ultramar. Toca à campainha, são sete da manhã e a porta abre-se às dez:
- Zé Kalanga, amigo, a casa deve ser grande. Estou a tocar à campainha há três horas!
- É pequeninha, é um T0! A campainha está avariada, por acaso ia sair agora!
- Vais trabalhar, amigo?
- És burro, pá?! Para trabalhar ficava na minha terra, aqui tenho casa e subsídio! Mas eu conheço-te? – Pergunta Zé Kalanga, intrigado com este desconhecido.
- Sou eu o Augusto, conhecemos-nos no ultramar e depois aqui. Ainda éramos jovens, tu tiravas-me as namoradas todas! Lembras-te?
- Fogo! E tu ainda és meu amigo?
- Sou!
- Então, não casaste?
- Casei! Mas aí não fui burro, casei com uma mulher muito feia, que de bonito só tem o nome, e tu não quiseste nada com ela!
- Eh pá, mas eu não me lembro de ti!
- Estás a brincar Zé Kalanga? Ainda há três dias falamos ao telefone e deste-me esta morada!
- A sério? – Exclama Zé Kalanga.
Zé Kalanga, já há muito tempo que se sente com algumas falhas de memória, mas desconhece que tem uma doença rara. Só tem memória dos últimos dois dias! Augusto tenta relembrar um momento inesquecível que os dois tenham passado juntos.
- Sabes esta moda dos velhos andarem fora de mão nas auto-estradas? Nós fomos os pioneiros, quando éramos jovens e descemos a circunvalação no mesmo carrinho de rolamentos, em contramão.
- Fogo, não me lembro!
- Então?! Íamos a descer e enfaixámos-nos numa motorizada que transportava todo o agregado familiar! Não te lembras? Fomos sete para o hospital e dois cães para o veterinário!
- Caneco, grande acidente! Éramos tolinhos, Augusto?
- Não, amigo Zé Kalanga, éramos muito burros!
- Aaahhh, então muita coisa não deve ter mudado! Mas o que te traz aqui? – Pergunta Kalanga.
- O que me traz aqui, nem lembra o diabo!... - E Augusto conta a história da sua saída para a faina e o desprezo com que foi tratado pelos elementos mais queridos da sua família. – E não apanhei o barco! Tinha que desabafar com alguém!
- Tu és um mariquinhas Augusto, tens a certeza que somos amigos?! Eles estavam com sono. Merecias uma coça por acordar as pessoas às seis da manhã, para pedir beijinhos!
- Seja como for eu não quero voltar para casa! Posso ficar em tua casa?
- Não! – Responde Kalanga.
- Não?
- Não!
- E então? – Pergunta Augusto.
- E então, nada!
- Nada? – Pergunta Augusto.
- Nada!
- Poça, e agora? – Pergunta Augusto.
- Poça, o quê? – Responde Zé Kalanga com outra pergunta.
- Pensei que éramos amigos!
- Ainda duvido Augusto! Mas tenho solução para ti! Vais ser gigolo!
- Vou ser o quê? – Pergunta Augusto, sem perceber o significado de gigolo.
- Vais sacar gajas e viver à custa delas! Vou-te dizer aonde ficam as melhores danceterias da zona, aonde param velhas loiras com algum dinheiro e…

São quase onze da manhã, Dália já tinha saído há muito para o mercado vender flores e Adélio Dani acorda estremunhado por um pesadelo no qual era uma cabine telefónica que apanhou um vírus e só conseguia fazer chamadas locais!

(continua)

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Adélio Dani (7º episódio)

Os anos vão passando e o tempo apaga a vergonha e o passado ilustre de Adélio Dani! A vida agarra-se novamente a uma rotina rotineira, Dália e Augusto saem cedo para trabalhar e Adélio Dani, ainda criança, fica em casa aos cuidados do cão e seu fiel amigo, Rubi.
Tinha Adélio Dani já completado dez anos quando um dia ao final da tarde, já próxima de casa, a mãe encontra a vizinha Zulmira, que lhe pergunta:
- Então Dália, que tal vai o Adélio na escola? Já está na quarta classe?
 - Chiça! -Retorquiu Dália, batendo com a palma da mão na testa – Esqueci-me que ele tinha que ir para a escola!
Adélio Dani, devido à idade tardia com que reentrou na vida académica, era o maior, mas também revelou-se, intelectualmente, o menos dotado da escola, sendo facilmente manipulado e influenciado pelos mais putos. Era sempre ele a ir ao poste e sempre que os seus colegas faziam asneiras, deitavam as culpas no Adélio, por isso estava sempre de castigo no canto da sala e com orelhas de burro, colocadas pela professora Clarisse, fria e implacável, que escondia um coração doce e romântico, onde guardava um amor secreto.
A única coisa interessante que Adélio Dani aprendeu não foi na escola, mas sim a ouvir um estranho, na taberna da freguesia, que falava de tempos idos e de grandes Impérios. Adélio Dani ficou fascinado e fixou a história de Júlio César, o “Grande Conquistador da Gália” e “Ditador Vitalício de Roma” e do seu sobrinho Octávio, que após ganhar a batalha marítima contra Marco António viria a ser o primeiro Imperador de Roma, O Grande César Augusto. Nesta história, Adélio Dani, ficou fascinado pela figura de César Augusto.

Após deixar a escola, ao fim de quatro anos, e não tendo conseguido passar para a segunda classe, Adélio Dani, com catorze, estava decidido a entrar no mundo do trabalho, mas a fazer algo que não fosse muito duro nem com horários rígidos.
- É isso, vou começar a ir aos recados para a minha mãe e para a minha avó! – Exclama, altamente esfuziado por esta ideia brilhante.
A ideia de Adélio Dani não era cobrar o serviço, mas sim ficar com o troco das compras. Durante dois meses andou sempre com trocado nos bolsos. Começou a tomar café e a ir à taberna com mais frequência e pela primeira vez, já com quinze anos, arriscou convidar uma miúda para lanchar…e assim leva a primeira nega.
Este negócio prosperava, mas foi descoberto e a sua mãe e avó começaram a mandá-lo às compras com o dinheiro certinho. A mina de Adélio Dani acabou, tinha que pensar em alternativas.
Muito pensou e: - Vou ser aldrabão! – Decidiu ser biscateiro.
Mas Adélio Dani não percebia nada de nada, portanto, ele arranjava o serviço, pedia ao cliente dinheiro adiantado para o material e algum para ele, e nunca mais aparecia. Começou a ganhar fama como o “Biscateiro Fantasma”! Durante dois anos, nunca repetiu a mesma zona para a prática da sua actividade que acabou por findar por se ter esgotado o espaço geográfico para se movimentar.
Nesta altura, com dezassete anos, Adélio Dani já tem as feições bem definidas. Usa penteado à Paulo Bento, tem rosto fino e magro, pernas arqueadas, demasiado magro, que ele confunde com elegância, tem uma ligeira corcunda, calça 46 e mede 1,69 metros. É um rapaz mal parecido, mas o espelho mente-lhe.  Acha-se o máximo, mesmo nunca tendo conseguido levar, até então, uma mulher para sair e nunca tendo recebido um elogio do estilo “tu és tão bonito” ou “ hoje estás giro”, nem mesmo ”até és engraçadinho”. Nem Dália, sua mãe, o elogiava, porque achava pecado mentir.
Desocupado, Adélio Dani, sozinho, começou a dar uns passeios pelo monte próximo de casa para pensar na vida. Nesse monte e sem Adélio saber, costumavam encontrar-se, para brincar e rezar, três amiguinhos escuteiros que mostravam a pilinha uns aos outros e davam beijinhos nos rabinhos uns dos outros, antes de orarem! A primeira vez que Adélio se cruzou com estes filhos de Deus, foi ditada a sua primeira experiência sexual, ao ser violado pelos três, quando já regressava a casa! Com o tempo gasto na violação, não houve tempo para rezar!
Adélio Dani chegou a casa fisicamente desgastado e com um andar diferente, com pernas bastante abertas e costas corcundas, mas viu-se ao espelho e não desgostou. Em casa, à excepção de Rubi, ninguém reparou que Adélio estava diferente e ele não comentou com ninguém essa sua experiência com os escuteiros. Adélio Dani sempre ouviu dizer que a primeira vez era geralmente frustrante e pensou que aquele acontecimento tinha sido normal e que “a primeira vez” de toda a gente era a violação homossexual.
Os passeios de Adélio pelo monte para pensar na vida, duraram uns meses, assim como os encontros ocasionais com os escuteiros que foram passando a palavra e a partir da terceira semana, em vez de três, estava lá todo o agrupamento “mirim”. As violações continuaram e os escuteiros deixaram de ter tempo para rezar!
Noutro dia ao final da tarde, já próxima de casa, Dália, encontra novamente a vizinha Zulmira, que lhe pergunta:
- Ó Dália, o teu filho está com um andar tão estranho?!
- Achas?
- Então… ele a andar quase que ocupa a rua toda com as pernas abertas!
- Ui, eu reparei que está um bocadinho diferente, mas deve ser do crescimento, não?
- Não. Isto traz água no bico! Quando ele era bebé, usava calçado ortopédico?
- Não vizinha, mas quando ele tinha dois anos, ofereci-lhe umas soquinhas tão bonitas! – E após uma breve pausa – Mas nunca as usava, acho que não gostava!
- Então é isso Dália, ele tem um problema nos pés. Eu tenho os sapatinhos do meu Gonçalo guardados, de quando era bebé! Vais levá-los e vais ver que daqui a algum tempo o teu Adélio está bom!
Dália levou para casa os sapatos ortopédicos do filho da Zulmira, que os usou desde os três meses até aos quinze anos e que foram alargando! Por dificuldades económicas, Zulmira só pôde comprar outro par de sapatos para Gonçalo, quando este já era adolescente.
Já em casa, na sala, Dália vira-se para o filho, que tinha acabado de chegar do monte e:
- Adélio Dani! – Chama Dália, num tom autoritário.
- Sim, mãe!
- Meu filho, anda desta parede até à porta!
Adélio Dani assim fez, e no percurso virou a mesa de jantar, deitou ao chão dois potes e um vaso!
- “Não noto nada de diferente, mas pelo sim, pelo não…” – Pensa Dália, para dizer de seguida:  – Adélio, a partir de agora vais começar a usar estes sapatos! Bonitos, não são?
- Fogo mãe, são feios e abertos à frente! – E depois de os experimentar… – E os dedos ficam de fora!
Dália fica a olhar para os pés do filho, com ar pensativo e:
- Até são jeitozinhos! Adélio, a partir de agora usas sempre esses sapatinhos!

Nasce um novo dia e bem cedo, Augusto, o chefe de família, é o primeiro a sair. Vai embarcar numa nova aventura e distante...vai para a pesca do bacalhau, nos mares do norte.

(continua)

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Adélio Dani (6º episódio)

Augusto e Dália olham um para o outro e sentem que naquele sítio poderiam encontrar explicação para o sucedido. Sem nada dizerem, entram no estabelecimento do Neto, enquanto Narciso, irmão de Dália, diz: – Eu vou indo!
Entram, seguem um pequeno corredor e desembocam numa pequena sala, escura, com uma mesa ao centro, onde está sentado o vidente Neto e no canto três motorizadas. O vidente Neto tem como part-time a actividade de garageiro.
- Boa tarde, estava à vossa espera! – Diz o vidente!
- Fogo! Como sabia que vínhamos? – Pergunta Augusto.
- Então, eu encomendei-vos uma pizza! – Diz o vidente Neto, admirado.
- Deve haver engano, nós não trazemos nada! – Clarifica Dália.
- Aaahh… então não era à vossa espera que estava! – Diz o Neto, e prossegue. – Que vos traz por cá?
- Uma chatice Sr. Vidente, o nosso filho praticamente nasceu a falar como gente grande, entrou logo na Faculdade e com cinco anos e meio já tem um curso superior, mas agora esqueceu-se de tudo e parece uma criança normal!
- Algo muito estranho e sem explicação natural aconteceu – Conta Augusto.
- E que idade é que ele tem agora? – Pergunta Neto, o vidente
- Tem cinco anos e meio Sr. Vidente! Estamos a vir agora da apresentação do trabalho de fim de curso do nosso Adélio! Mas esqueceu-se de tudo! – Explica Augusto.
- Muito bem, já percebi! Vou consultar a minha mota mágica! – Diz Neto.
Dália, Augusto, Adélio Dani e Rubi, muito admirados, ficam a olhar uns para os outros, enquanto Neto, o vidente, se dirige para uma das motorizadas que estão no canto da garagem! Coloca o “quico” na cabeça, monta a Famel e durante breves momentos acaricia o depósito de combustível da motorizada! Desmonta a motorizada, saca de pente, penteia o cabelo para o lado e dirige-se novamente para a mesa, no centro da sala. Senta-se e diz:
- Quando o puto nasceu, ele não falou, quem falou foi o cão!
- O quêêêêêê?? Assim não te damos nada! – Dizem os pais de Adélio Dani.
- O que é que eu disse?! – Pergunta o vidente.
- Disseste que quem falou foi o cão! – Diz Augusto.
- Confundi-me, o menino quando nasceu falava muito bem! Vocês se fossem uns pais em condições, tinham-no metido no Inglês. – Diz o vidente.
- Olhe, não nos lembrámos! – Responde Dália, e prossegue: – Mas afinal o que é que o nosso menino tem?
- Esqueci-me! – Responde Neto, o vidente.
Levanta-se da mesa e dirige-se para a mesma motorizada no canto da garagem! Coloca o “quico” na cabeça, monta a Famel e durante breves momentos acaricia o depósito de combustível da motorizada! Desmonta a motorizada, saca de pente, penteia o cabelo para trás e dirige-se novamente para a mesa, no centro da sala. Senta-se e diz:
- A criança, sem vocês se aperceberem, caiu e bateu com a cabeça no chão e ficou com inteligência normal!
- Ai meu Deus, que desgraça! O que nos havia de acontecer, coitado do nosso menino! – Exclamam os pais de Adélio Dani.
- Gostaram da explicação? – Pergunta o Neto.
- Sim, gostamos! – Responde Dália
Perante esta resposta positiva, Neto, o vidente respira de alívio! Da entrada da garagem ouve-se uma voz:  - Venho entregar uma pizza.
- E agora, o que fazemos? – Pergunta Augusto, sem vislumbrar soluções.
- Vocês pais, voltam a ter um filho normal de cinco anos e meio. Ele tem que brincar com outras crianças, atirar pedras às sardaniscas, rachar a cabeça, ir para a escola…primária, andar à gadulha, coisas assim! Entenderam? – Explica Neto.
- Sim, Sr. Vidente, entendemos! Quanto é da consulta? – Pergunta Augusto.
- Olhem, à saída, paguem a pizza ao homem que está lá fora.

A família chega a casa, em Campanhã, e chega com a vergonha de Adélio Dani ter perdido, aos cinco anos e meio, o título do mais bem sucedido da freguesia. Este título passou para Nel, olhado agora por todos com mais admiração, por passar do segundo para o primeiro mais bem sucedido da zona.
Casado, sete filhos, a mulher só lhe foi infiel quarenta e quatro vezes em quinze anos de casamento… e um pormenor de classe nesta comunidade, Nel tem um emprego… na verdade, um part-time na lavandaria da freguesia vizinha que lhe garantia um ordenado e onde também lavavam a roupa da sua família a um preço simbólico. É a família mais limpinha da zona.


(continua)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Adélio Dani (5º episódio)

O senhor de meia idade que, de pé, aplaude Adélio Dani, é Victor Incertâncio, representante de um grupo de banqueiros, que está acompanhado na palestra pelo reitor.
- Formidável o cachopo. O raio do puto é tramado, só vê dinheiro! É disto que estamos à procura! – Comenta Victor Incertâncio com o reitor.
- Ele é o melhor dos melhores! – Diz o reitor.
- Quero falar com o gajo! – Diz Victor  Incertâncio, com o seu palavreado agressivo e pró-activo, adquirido após um curso de duas tarde sobre PNL (Programação Neuro Linguística). Antes disso falava baixinho e timidamente, sem nunca confundir a pronúncia dos V’s com os B’s.
- Trato já disso! – Responde o reitor.
Depois de enfiarem uma chupeta em Adélio Dani, este cala-se e é levado juntamente com os pais, para um escritório, onde já estava Victor Incertâncio. São colocados frente a frente, numa secretária de onde mal se via a cabeça de Adélio.
- Pois é pá! – Diz Victor Incertâncio, num tom viçoso e prosseguindo no mesmo tom. – Arrasaste! Adorei o teu discurso que abre novas linhas de pensamento para a economia moderna. Tocaste na palavra-chave:  SE-MA-NA-DA! A malta antes não recebia nada e de um momento para o outro começa a receber mesadas! Isto há décadas. Há que mudar outra vez de paradigma e a solução para a crise passa pela SE-MA-NA-DA! És um rato de cofre, nasceste para tramar os outros…aaahh, gosto disso!
Após estas palavras, Adélio Dani continua sentado e a mamar na chupeta! Rubi sente que tem de fazer algo:
- Obrigado! – Ladrou Rubi.
- De nada rapaz, és um génio. Quero-te comigo no meu Banco, tenho um contrato para ti! Vais ser rico e aldrabão! Que idade tens? – Pergunta Victor Incertâncio.
Adélio Dani percebeu a pergunta e levanta a mão com os dedos abertos, indicando os seus cinco anos.
- O quê? Só tens cinco anos? Assim não dá! – Exclama, surpreso, Victor Incertâncio.
- Cinco e meio, Sr. Victor Incertâncio, cinco e meio, já não é uma criancinha de quatro ou cinco anos! O meu rapaz está um homem! – Argumenta Augusto.
- Pois, mas nos Bancos que represento, ninguém trabalha com menos de dezasseis anos! Quer dizer, tirando os cinco negros e oito chineses de nove anos! Mas brancos, só na legalidade!
- Ó Sr. Doutor Victor Incertâncio, o meu Adélio fica moreno muito depressa, o sol pega-lhe bem. Ele com quatro ou cinco sessões de solário parece um pretinho! – Diz a mãe.
- Pois é! E no verão passado é que foi cómico, ao terceiro dia de praia ele já estava tão escuro, que quando entrávamos no nosso sector as pessoas levantavam os braços, hi, hi! – Reforça o pai.
- Ui, e vocês, como lidavam com a situação? – Pergunta Victor Incertâncio.
 - Muito bem, aproveitámos e assaltámos as pessoas! Foram umas férias que ficaram muito em conta! – Explica o pai Augusto.
- Sim, sim, sim, sim…. – Diz Victor Incertâncio, quando é interrompido por Augusto.
- Sim, sim, ele é contratado? – Pergunta.
- Não, não, não! Mas sim, sim, sim, ele pode parecer pretinho, mas na realidade é um branco hiperdotado, com cinco anos e meio…e eu sei-o!
Após estas palavras, Victor Incertâncio levanta-se e abandona a sala para nunca mais ser visto. Corre o boato de que mudou o nome para Victor Constâncio e começou a usar óculos. Nasceu a lenda!
Na sala, os pais de Adélio Dani e o reitor ficaram atónitos e sem reacção. O reitor telefona novamente para o seu amigo médico e pede a sua comparência com urgência na sala de reuniões da Faculdade de Economia. Nas calmas, o amigo médico apareceu:
- E então?! – Diz ele.
- Só agora? – Pergunta o reitor.
- Ainda me deves 100 €. Por isso tenho tempo para apanhar outro calote! Que me quereis, caro amigo? - Pergunta o médico.
- Cortaram as pernas ao Adélio, o hiperdotado! – Explica o reitor.
- Mas ele está a correr atrás do cão! – Repara o médico.
- Não percebe Sr. Doutor? Cortaram as asas ao nosso menino! – Diz a mãe.
- Mas ele é um menino, não tem asas. No máximo podem cortar-lhe os bracinhos ou as perninhas! – Repara novamente o médico.
- Não o deixaram voar! – Diz o pai.
- Ainda bem que houve alguém com juízo! Olhe que o resultado não ia ser muito bom! Então, pôr o menino a voar?! Tem algum jeito?! – Diz o médico.
Enquanto os adultos conversam, Adélio Dani continua a brincar com o seu maior amigo, o Rubi.
- Vocês estão loucos? Quanto ao miúdo, tenho de o examinar! – Diz o médico.
Após algum tempo de auscultações, o médico dita o veredito:
- Tenho boas notícias. A hipertensão detectada há cinco anos atrás passou, hipercondríaco parece-me que já não é!
- E hiperdotado?! – Perguntam os pais Augusto e Dália.
- Como há cinco anos atrás…não me parece! – Diz o médico.
- Mas, não tem nada de hiper?! – Pergunta Dália.
- Sim, tem! Parece-me hiperactivo! Dêem-lhe Hiperrastosoi, uma pastilha por dia. É um boião de 45625 pastilhas. Guarde o boião num local fresco e arejado e isto dá até aos cento e trinta anos da criança! – Aconselha o médico.
- Ó, ó amigo médico, quanto é da consulta? – Pergunta o reitor.
- 1200 €. – Diz o médico.
- Aahh, o quê? Eu pedi uma consulta, não foi um assalto! – Diz o reitor, indignado.
- 1000 € da primeira consulta, há cinco anos atrás, que foi 100 € mais juros de mora, e 200 desta! 1200€! – Explica o médico.
- Obrigado meu amigo médico, já podes ir. – Diz o reitor ao médico, acompanhando-o à saída e empurrando-o para fora do gabinete e fechando a porta.
- São 1200 €! – Ouve-se do lado de fora da porta.
De volta ao centro da sala e virado para os pais de Adélio Dani, o reitor prossegue:
 - A idade do Adélio foi um percalço, vamos manter a calma! Vamos usufruir da inteligência do menino, vamos fazer-lhe umas perguntas difíceis!
- É isso, bem visto! – Dizem os pais.
Adélio Dani continuava a brincar com o Rubi. O reitor pega nele e senta-o na cadeira.
- Adélio, vamos brincar às perguntas difíceis! Se eu apanhar uma nave espacial e for daqui à lua, lá compro três rebuçados a 3 € cada um, por causa da falta de gravidade, depois vou a Marte e não vendo nenhum, mas troco dois por uma cratera e depois regresso à Terra. Perante este cenário, qual é a inflação na Zona Euro?
- Olááááááá! – Responde Adélio com um sorriso rasgado.
- Acertou?! – Perguntam Augusto e Dália ao mesmo tempo, entusiasmados.
-Aaaah, não, não acertou! Esta devia ser fácil demais para ele, que nem quis responder! – Diz o reitor, e prossegue: – Bem aqui vai outra…puxadinha! Adélio, qual é o cosseno de x, sabendo que o seno de y é igual a 20 + cosseno de x?
- O papá ressona! – Responde Adélio.
- Acertou, ele é mesmo fino! – Diz a mãe com um sorriso e toda vaidosa do seu menino.
- Não, não acertou!  - Diz o reitor, começando a sentir-se confuso.
- Então qual é a resposta? – Pergunta o pai.
- Não sei, mas “O papá ressona”, não é com certeza! – Diz o reitor e lança nova pergunta. – Adélio concentra-te. Quanto é 2+2?
- 7. Quero brincar! – Responde Adélio.
- O menino deve ter tido um esgotamento! – Palpita o reitor.

É final de tarde, após completar um curso superior exigente, Adélio Dani, o menino de cinco anos e meio, hiperdotado, comporta-se como um menino normal de cinco anos e meio! Augusto e Dália, juntamente com o filho, o tio Narciso e o cão Rubi, abandonam as instalações da Faculdade de Economia e dirigem-se para casa, abananados com a partida que o destino lhes pregou. Na rua Joaquim Azevedo, já em Campanhã, avistam na porta de uma garagem um cartaz que anuncia: “Neto, o vidente, adivinha o passado e o presente.”


(continua)

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Adélio Dani (4º episódio)

Quando tomou consciência de si como pessoa materialista e se apercebeu que não pertencia a uma família bafejada pela sorte, de imediato se revoltou com os pais, não lhes dirigindo a palavra durante três meses. Victor Incertâncio não entendia como sendo o pai e a mãe, pobres, nem um nem outro procuraram alguém rico para se casarem.
Foi para a primária aos sete anos, um pouco mais tarde que os outros meninos, pois tinha que levar os dois bois e a vaca da família para o campo logo pela manhã. Só quando o irmão mais novo fez cinco anos e, segundo os pais, já estaria na idade de assumir responsabilidades e deixar as brincadeiras de canalha, foi substituído na actividade de levar os animais para o campo e ingressou na Escola Primária de Campanhã.
Mais por burrice dos coleguinhas do que por inteligência própria, Victor Incertâncio distinguia-se dos restantes.
Quanto é 2x1? – Pergunta a Professora Luísa ao Nando, que se encontra no quadro.
O tempo passa e a hora para o recreio aproxima-se. Todos os meninos pensam, “Responde”.
A vontade de que Nando respondesse era para poderem ir para o intervalo e por medo que a professora direccionasse a pergunta para outro. O único com alguma certeza do resultado é Victor Incertâncio, que tem a certeza que o resultado é “dois” ou “três”.
- Ninguém sai da sala, enquanto o Nando não responder. – Impôs a professora.
Com o Nando cada vez mais nervoso, a matutar qual será o resultado da conta de “vezes”, a professora perde-se nos seus pensamentos, revelando um sorriso, na expressão austera, preso ao passado, em que recorda o boato transmitido por uma prima, de que um primo do amigo do primo, irmão da prima, estaria apaixonado por ela e com intenções sérias de casar. O casamento nunca chegou a acontecer, porque eles nunca se chegaram a conhecer! Ainda hoje, a professor Luísa diz-se solteira por opção, apesar de ter vivido um grande amor!
Já muito depois da hora do recreio, Luísa “desperta” e fecha a expressão:
- Menino Nando, 2x1?
- Não sei, professora! – responde Nando, a chorar.
- São “2”! – Dispara a resposta, Victor Incertâncio, sem ter a certeza, num golpe de sorte.
- Muito bem! – Elogia a professora, confundindo o golpe de sorte, com inteligência.
E assim seria a sua vida, feita de golpes de sorte e “chico-espertices”, que determinariam a sua ascensão. Durante a adolescência pagou os estudos superiores com o dinheiro ganho a jogar bilhar, sempre com o mesmo adversário, escolhido a dedo, o Abílio, portador de Trissomia 21, na altura chamado de mongoloide. Os pais de Abílio, não se importavam com o facto de o filho perder muito dinheiro no jogo, esta era a forma dele ter um amigo, nem que fosse interesseiro. Mas a amizade ficaria para a vida.
Pouco depois de se ter formado em Economia e tudo perspectivar uma carreira profissional a “chular” o Bilinho, este, numa tarde quente e aborrecida de Verão, parte o polegar da mão direita a lançar um pião. Quando Victor Incertâncio recebe a notícia, o mundo quase que desabou com a forte possibilidade de ter que trabalhar, mas rapidamente arranjou solução...fundou um banco, vivendo à grande, sempre com o dinheiro dos outros!

Actualmente, em Campanhã, encontra-se a sede do BISCAA, Banco de Investimentos Seguros com Alguns Azares, cabeça de um importante grupo financeiro, com monopólio em todas as actividades em que o dinheiro possa ser ganho com práticas pouco claras, usando tráfico de influências e à custa dos melhores talentos que Vitor Incertâncio “busca” nas Universidades.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Adélio Dani (3º episódio)

Adélio Dani é matriculado e começa a frequentar as aulas na faculdade de Economia enquanto os pais mantêm as suas actividades. Augusto sai todos os dias para o mar e Dália para o mercado de peixe e o sol todos os dias nasce atrás da estação de Campanhã e põe-se por trás da casa do Angelino.
Adélio Dani é levado para a Faculdade, na alcofa, pelo seu grande amigo Rubi, que também transporta os livros escolares numa pasta pendurada no seu lombo. Graças a Rubi, Adélio Dani nunca falhou uma aula e chegava sempre a horas. A integração que à partida se poderia supor complicada, devido ao feitio especial dos hiperdotados, foi fácil e rápida, em que a praxe e as festas académicas foram um bom incentivo. Rubi como fiel e bom amigo, nunca bebia nas festas, para que o seu pequeno dono pudesse usufruir à vontade dos excessos naturais do arranque da vida académica. Adélio Dani apanhou a sua primeira bebedeira às seis semanas de vida, ao início de uma noite de concerto dos “Xutos” e apanhou o primeiro coma alcoólico nessa mesma noite, no intervalo do concerto!

A vida académica decorria normalmente, quando no final do primeiro ano, Adélio Dani tem um teste de fogo. Um exame de apenas uma pergunta de desenvolvimento, que se traduzia no seguinte: “A teoria Marxista e a sua aplicabilidade nos tempos actuais. Desenvolva.”
O teste é distribuído por todos os alunos. Quando Adélio Dani recebe a folha do teste, mete-a no meio das suas pernas. Durante o teste, a criança obra diarreia de forma fluída, que transbordou da fralda para a folha do teste. No final do tempo regulamentar, o professor recolhe todos os testes.
Após a recolha, o Professor Doutor ficou curioso relativamente ao teste de Adélio Dani, por dois motivos. O primeiro porque nunca tinha corrigido o teste de um hiperdotado e o segundo devido ao cheiro da folha do teste. Corrigiu-o de imediato e ficou assombrado com a inteligência do petiz, que sem palavras conseguiu explanar toda a porcaria que é preciso para aplicar a teoria marxista nos tempos modernos do mundo ocidental. Com distinção passou para o segundo ano!

Com pouco mais de dois anos de idade, Adélio frequenta o segundo ano na Faculdade de Economia. Augusto todos os dias sai para o mar e Dália para o mercado de peixe e o sol todos os dias nasce atrás da estação de Campanhã e põe-se por trás da casa do Angelino.
Eis que a meio do ano lectivo, algo de trágico acontece na vida académica de Adélio Dani. É apanhado a copiar num teste sobre “As finanças em Portugal”. Implacável, o Reitor chegou a pensar em ponderar a expulsão de Adélio Dani da faculdade, pondo em alvoroço toda a população estudantil, mas desistiu da ideia porque só ia arranjar chatices ao ter de expulsar metade dos alunos…no mínimo!
Passado este episódio, Adélio Dani vai passando de ano em ano enquanto uma parte, cada vez mais considerável, da população estudantil continua a copiar, Augusto todos os dias sai para o mar e Dália para o mercado de peixe e o sol todos os dias nasce atrás da estação de Campanhã e põe-se por trás da casa do Meireles, após o incêndio que destruiu a casa do Angelino.
Eis que ao fim de cinco anos de estudos chega o grande momento. Adélio Dani, o hiperdotado, com apenas cinco anos e meio, entra no palco do anfiteatro da Faculdade de Economia, com o amigo Rubi a seu lado, para apresentar o seu trabalho de fim de curso perante uma plateia cheia, onde se encontram os pais Dália e Augusto e o tio Narciso, todos de papo cheio de orgulho.
Adélio Dani, com a sua voz de criança, inicia a apresentação do trabalho: - Olá, eu quero uma semanada! – E desata a chorar baba e ranho, por estar num palco tão grande e perante tanta gente.
Os pais, perante esta reacção pouco esperada de um hiperdotado, encolhem-se de vergonha e olham de cabeça baixa para toda a gente, à espera de reacções. Silêncio total, não fosse o berreiro insistente de Adélio Dani, agarrado ao seu fiel amigo Rubi, até que da assistência se levanta um senhor de meia-idade, que aplaude!

(continua)