Era final de tarde...de sexta feira.
Chegado a casa do trabalho, olho à minha volta com as
mãos à cintura e naturalmente esboço um sorriso rasgado, só para um dos lados,
como quem teve uma trombose, mas no meu caso num sinal de malandrice e
libertinagem que ainda mantenho aos 41 anos e penso, “Ainda és um rebelde, Velhinho!
Vai dar um passeio.”
Terminado o pensamento e quando ia dar uma borrifadela de
perfume o telefone toca e do outro lado perguntam se já cheguei a casa.
- Sim! – respondo.
- E vais sair?
E sem me dar algum tempo para responder, a Cristina
diz-me para estender uma bacia de roupa e repete a pergunta:
- Vais sair?
Respondi que não, com o mesmo sorriso rasgado só para um
lado, com a malandrice pura de quem tem segredos e desliguei.
Depois de estender a roupa que mascarou o meu segredo
preservando a minha integridade moral, saio de casa.
Entro no carro e começa aquilo que começou várias vezes
durante o dia, a chover. Arranco e sigo na minha rua sem saber para onde ir. Entreguei-me
ao destino, com o sorriso rasgado só para um dos lados, e lembrei-me que
destino rima com casino - “É isso, vou ao casino da Póvoa.”, pensei, mas quando
me preparava para dar o pisca para a esquerda, espirro e salivo o vidro sobre o lado direito, ´”É isso, vou para a direita!”, repensei, e dou o pisca para a
direita e uma placa dizia “Santo Tirso”... lá fui.
Apesar de todos os sinais de rebeldia até ao momento, ir
a Santo Tirso, para mim, não é um sinal de ir ao encontro do desconhecido.
Estudei lá, dos 14 anos até aos 16, e de vez em quando continuo a lá ir.
Chegado ao meu destino, estaciono o carro no lugar de
quase sempre, no parque da Câmara Municipal e quando desligo o carro, lá em
cima também se desligou algo e parou de chover. Olho para o meu guarda-chuva e
fico a pensar, “Levo-te ou não?!”.
Com aquele sorriso, que já sabem, num sinal de audácia ou
tremenda estupidez, digo-lhe – Vais ficar. – e saio do carro sem nenhum sítio
para onde ir, a ideia era apenas passear.
Santo Tirso, desde os meus tempos de estudante, mudou a
um ritmo menor do que o meu passo arrastado para fazer horas. E esta razão a par da
recuperação do casario antigo, mantem a cidade pitoresca e aberta, cheia de
jardins.
Num momento do passeio recomeça, aquilo que practicamente
não deixou de acontecer durante o dia, a chover.
- Afinal fui estúpido! – digo baixinho a lembrar-me do
guarda chuva no carro.
Atravesso a rua e entro na pastelaria mais conhecida lá
do sítio a “Moura”, onde toda a gente vai comer “Jesuítas” e eu tomar café.
Por detrás do balcão as três senhoras do
costume,entradotas na idade, cabelo armado pela melhor laca e com um sorriso de
meninas que imagino ser o mesmo de há décadas atrás.
Antes de me sentar fui à casa de banho fazer uma coisa.
Quando saí, perante a sala vazia, tive dificuldade em escolher uma mesa, gosto
bem mais de cafés cheios, apenas com uma ou duas mesas de vago.
Uma quarta senhora, entradota de idade, mas mais nova do
que as outras, esperou que eu parasse de deambular por entre as mesas, o que aconteceu
quando me sentei na mesa ao lado da de uma miúda gira, que entretanto tinha
chegado.
Pedi um café que me foi servido e enquanto o tomava, como
a miúda gira não olhava para mim, perdi-me a olhar para as três senhoras mais
velhas por detrás daquele balcão.
À minha frente, as cores começaram a mudar, para o preto
e o branco, o balcão ficou antigo e por detrás dele estavam três meninas,
certamente com menos de 20 anos, que, pelo sorriso, reconheci serem as
senhoras, entradotas de idade, que pouco antes lá estavam. A miúda gira
desapareceu e cá fora continuava a chover e apenas dois carros antigos
estacionados. Via-se gente apressada a passar, eles, todos, de chapéu na cabeça
e muitos de fato, cujos modelos só vejo em fotografia. No salão, um corropio de
gente a entrar e a sair, onde todos se cumprimentavam com protocolo e faziam
vénia às senhoras como manda (ou mandava) a boa educação. As mulheres não
tinham tempo para ficar, mas eles, principalmente os que entravam de fato,
todos eles cinzentos, tentavam um lugar ao balcão, para ficarem perto das
meninas, que se riam com o que eles diziam e lhes lançavam sorrisos. Após o
café, as meninas, com jeito para o negócio e sabendo os rapazes encantados,
perguntavam:
- E então, não come um “Jesuíta”?
Rendidos diziam que sim, alguns, vi, a contarem os trocos
sem darem nas vistas, não tivessem de dizer:
- Obrigado, mas agora não...estou cheio!
Com o olhar mais atento, em momentos diferentes, entraram
três rapazes, para quem cada uma delas, sem perder o sorriso e as gargalhadas,
o olhar se rendeu...mais nenhum rapaz ou senhor, que entrasse naquele salão,
teria hipóteses com aquelas raparigas por mais “Jesuítas” que comessem!
Desviando o olhar do que acontecia à minha frente olhei
cá para fora, quando o último dos três rapazes saiu. Tinha parado de chover.
Quando devolvi o meu olhar para o interior, o balcão era
outro e com cor e atrás estavam as três
senhoras, entradotas na idade, e na mesa ao lado a miúda gira sem o sal
daquelas velhinhas, cujas gargalhadas pararam no tempo, como a cidade.
Levantei-me, sem olhar para a miúda gira, e ao pagar o
café, alguém entra e o olhar da senhora que me está a atender, rendeu-se. Ao
virar-me para sair, vejo um senhor antigo, com a mesma postura do último rapaz
que vi a sair!
Cá fora, apresso o passo em direcção ao carro enquanto
não chove...e recomeça a chover. Entro, olho o guarda-chuva e antes de arrancar
em direcção à Trofa a uns delinquentes 50 km/hora, alheio a qualquer lençol de
água, refaço a mim mesmo a pergunta – Audaz ou estúpido?