domingo, 27 de abril de 2014

Liberdades de Abril (parte I).

Félix, assina, como no bilhete de identidade, Felix DA Silva DE Pereira e é conhecido em casa por pai e “home”, mas é mais conhecido entre os amigos por Félix e mais conhecido entre os conhecidos por Félix. Quando conhece alguém apresenta-se como Félix DA Silva e entre quem não o conhece é conhecido por “aquele gajo, pá!”.
Em Março de 1974 fez quatro anos de casado, cerimónia que aconteceu em 1970, após a chegada de uma missão de dois anos e meio no norte de Moçambique, onde fez amizades de sangue que nunca esqueceu. Nesses quatro anos de alguma felicidade teve quatro filhos da mulher, a quem os pais puseram o nome de Maria, porque desejavam que a filha fosse um exemplo de mulher, como a mãe de Cristo, e “do Céu”, porque a mãe, devota seguidora do padre da aldeia, gostava de uma passagem da homilia, em que se faz referência à “Glória do céu”.
Com quatro gravidezes e actividade física restringida às lides domésticas e a tratar dos filhos e do “home”, o corpo de Maria do Céu tornou-se desinteressante (sem nunca o ter sido) aos olhos de Félix. O casamento pela igreja e a “vergonha” não davam coragem a Félix de deixar a mulher, apesar de ele ter a certeza disso nos festejos do  quarto aniversário. Precisava de uma reviravolta na sua vida!
Um mês depois aconteceu uma reviravolta ao país, através de um golpe de estado, com o objectivo (aparente) de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.
Félix DA Silva DE Pereira não era muito inteligente, mas não se deixava ir pelas “ondas como os cardumes” e apercebeu-se que o “Democratizar” aconteceu por um triz, visto que alguns (talvez a maioria) capitães de Abril queriam acabar com uma Ditadura de direita e impor outra, tornando Portugal um país satélite da União Soviética; o “Descolonizar” foi apressado, fazendo 500.000 portugueses voltar à metrópole, sem nada e deixando as ex-colónias entregues a facções armadas e a população negra desprotegida; e o “Desenvolver”, através de uma reforma agrária medieval!
- Isto eu não festejo! – Pensou Félix, ainda longe de imaginar o que o país esperava, a nossa “classe política”.
Mas graças ao 25, Félix festejou os dias 26, 29 e 30, datas correspondentes aos seus 3D’s de Abril.
Festeja o “Divertir”, a 26 de Abril. Sem medo junta-se com os amigos na mesa do café ou na rua e expressa as suas opiniões e no fim vai para casa em vez de ser preso…não imaginava que fosse tão animado falar sem ser em surdina e a espreitar por cima do ombro!
A 29 de Abril festeja o “Divorciar”. Foi neste dia de 1974, que chega a casa com os papéis para o divórcio e encontra a mulher de mini-saia, a mostrar as “carnes” e a fumar SG Gigante e com uns papéis de divórcio, também na mão. Foi um espanto para ele…sempre pensou que Maria do Céu fosse feliz, a cozinhar, limpar, a “levar” e a cuidar dos filhos e dele!
No dia 30 terminam os festejos de Abril, com o último “D” de “(en)Dividar”, o maior rasgo de desenvolvimento e modernidade português.
Neste dia de 74, Félix foi ao banco onde trabalho o amigo Tone e pergunta-lhe pelo estado da “conta”.
- Não tens dinheiro…mas também não deves nada a ninguém! – esclarece Tone.
- Está mal! – Responde Félix, continuando – Dá-me um crédito qualquer que me crie dívida.
Ao longo dos anos, Tone deu-lhe créditos para tudo, tornando Félix numa personalidade fiscal falida, mas moderna!

Nos festejos dos quarenta anos dos 3D’s de Félix, este foi obrigado a festejar o “dia da liberdade”, o 25, de cravo na lapela pela PDPC-DGS (Polícia do Politicamente Correcto-…)…mas o “D” de “Democratizar” vai festejar às escondidas desta, ao celebrar os trinta e nove anos do 25 de Novembro de 1975.

sábado, 19 de abril de 2014

Sou melhor que o macaco!

Sempre que o tempo permite, quando não está a chover, apesar de preferir os dias luminosos, e não está muito frio nem vento, apesar de preferir temperaturas amenas e uma brisa refrescante, abdico do carro para fazer uso da capacidade que nos distinguiu dos macacos, o bipedismo, quando os passeios, na ida e volta, não ultrapassam os cinco quilómetros num horizonte temporal de seis horas.
Durante o passeio tenho tempo para apreciar a paisagem que me escapa no dia-a-dia e perceber o sítio a que pertenço, aproveitando tempo só para mim, perdendo-me nos meus pensamentos, isto, quando inadvertidamente acaba a bateria do telemóvel que me desliga do Facebook e não me permite continuar a utilizar outra capacidade que nos distingue dos outros animais, o uso do polegar, para teclar e fazer “posts”.
Nestas caminhadas, por vezes  a caminho de nada, gosto de passar pelo café. Por vezes, como sinal de humildade da nossa espécie, paro num em especial, geralmente cheio e ruidoso. Cadeiras a serem arrastadas, máquina de café sempre a trabalhar, as pessoas despreocupadas, desatentas ao volume da voz, correndo o risco de ouvir uma estória minha, empregados atarefados, alguns sem tempo para um sorriso…recordando-me a algazarra do recreio da Escola Primária, faltando apenas uma bola a correr por entre as mesas, fazendo-nos parecer como todos os outros animais, deixando unicamente para a formiga a capacidade de viver numa sociedade organizada e complexa.
Noutras ocasiões, prefiro um outro café, mais sossegado, que me permite dar uso à inteligência, que me põe a anos- luz à frente dos outros (animais) e saber o que se passa no mundo, lendo os jornais, isto enquanto as poucas pessoas que o frequentam, não libertam a “Caras”, a “TV guia”, que me coloca a par da grelha televisiva, e a “Hola” espanhola.
Geralmente nestes passeios cruzo-me com gente, alguma de quem realmente gosto e me permito conversar, para dar uso á suprema característica que nos distingue do restante reino animal, o raciocínio…isto se não falarmos de futebol, nem de política, nem de algum reallity show e afins, fazendo-nos ser mais irracionais do que um ser unicelular…apesar de fugir do tema “Futebol”, quando encontro um amigo específico de adolescência, cuja capacidade de raciocínio equivale à de uma pedra…não desço tão baixo!
O  trajecto da caminhada, geralmente é o mais rural possível, dentro de uma cidade, para escapar à confusão do trânsito e ao roncar dos carros, prova da capacidade inventiva do Homem, que lhe permitiu viver nos meios mais hostis, enquanto o resto da bicharada teve que se adaptar…ainda só estranho os rasgos de primitivismo na comunicação, com buzinadelas, insultos e expressões amacacadas!
Mas se dúvidas houver desta superioridade, elas dissipam-se no regresso a casa, quando passo por miúdos, ainda em estado ligeiramente primitivo. Brincam na rua, andam de bicicleta, jogam à bola, em vez de estarem enfiados num quarto a provocar um holocausto num jogo de computador, e em vez disso, andam à fisgada à passarada, mostrando a supremacia do Homem sobre o resto dos animais. Entusiasmado, quando o Pantufa, um cão simpático de rua, se aproxima de mim a dar ao rabo, afasto-o com um pontapé – Sou o maior! – penso.

Cheguei a casa, feliz, por ter um cérebro maior do que o do Pantufa e o da passarada, que permite que o ser humana seja o mais inteligente…e o mais Asinino, também, sem desprimor para a raça! 

domingo, 6 de abril de 2014

O papelzinho?!

Margarida, desde há quarenta anos, faz todos os dias úteis o mesmo percurso a pé para o local de trabalho, o Departamento de Licenças das Finanças, e há cinquenta e dois anos que faz o mesmo percurso todos os dias úteis, desde os seis anos, quando foi para escola primária, que ficava cinquenta metros após o edifício onde viria a ser instalado o Departamento de Licenças das Finanças e faz, desde que se recorda, o mesmo percurso todos os fins-de-semana e dias de feriado até ao parque, que fica situado após a antiga escola primária.
De tanta ida e volta, os sapatos rasos de Margarida estão marcados no passeio e todos respeitam estas marcas como se fossem uma passadeira válida apenas para ela. Fora do trabalho acham-na simpática em virtude do sorriso que mantém no vai e vem casa-trabalho, mas preso ao passado, em que recorda o boato transmitido por uma prima, de que um primo do amigo do primo, irmão da prima, estaria apaixonado por ela e com intenções sérias de casar. O casamento nunca chegou a acontecer, porque eles nunca se chegaram a conhecer! Ainda hoje, Margarida diz-se solteira por opção, apesar de ter vivido um grande amor!
Nesta vida aparentemente marcada pelos hábitos, tudo se desmorona à noite no segredo do quarto da casa, desde que a sua mãe faleceu. Debaixo dos cobertores, enquanto dura a reza do terço, Margarida contrai e relaxa os glúteos, mantendo-os em boa forma relativamente ao resto do corpo e permitindo-lhe usar as saias ligeiramente travadas e com folhos abaixo do joelho, estilo atrevido adoptado quando jovem e parolo com o passar dos anos…para a parte de cima, camisa com lenço ao pescoço, coberta sempre por um casaco de malha.
Sendo chefe da secção de atribuição de licenças, Margarida está sempre atenta às conversas dos seus colaboradores com os empreiteiros. Sempre que uma licença está prestes a ser atribuída, ela levanta-se da secretária, aproxima-se e pergunta – E o papelzinho? Já tem o papelzinho?!
Esta pergunta maldita para os promotores imobiliários, é o “click” para, atarefados, mexerem em toda a papelada que trazem na pasta. Depois de vasculharem impressos, selos e certificados, o papelzinho nunca é encontrado e a licença não é atribuída.
Quase não há construções novas na terra de Margarida desde 1970 e as poucas que foram realizadas, foi à custa de licenças atribuídas em período de doença ou de férias desta, atribuídas pela sua substituta. Sentindo-se desautorizada, quando regressava após a doença ou das férias, quase sempre passadas nas termas, tratava de as embargar.
Naquele dia, quando passa pela obra do Centro Comercial, licenciado durante uma gripe, mas devidamente embargada e com inauguração marcada para dali a duas semanas, cai num buraco e bate com a cabeça num tijolo.
Quando recupera os sentidos, levanta-se, olha para si, tem a saia composta mas o casaco está rasgado no braço – Ainda tenho umas cotoveleiras lá em casa! – pensa. Levanta a cabeça, olha à sua volta e – Uuiiii!!! – exclama.
Por todos os lados deserto, muito próximo, milhares de homens mal vestidos são chicoteados enquanto puxam pesadas pedras. Olha para a sua direita e abismada, Margarida vê uma construção a tomar forma de uma pirâmide e em frente, um homem aos berros – Deve ser este o empreiteiro! – pensou.
- Ó senhor. – chamou num tom bem audível.
O homem de trajes estranhos e tez muito morena aproxima-se.
- A licença para esta obra? – pergunta.
- Licença?! Eu fui mandado fazer esta pirâmide.
- Por quem? – pergunta Margarida, começando a perder a paciência.
- Pelo meu Amo, o Grande Tutankhamon!
Incomodada, Margarida manda chamar o Faraó e pede-lhe o papelzinho da obra. Perante a inexistência de papelzinho, Margarida embarga a obra e fiscaliza outras em curso: estátuas gigantes com corpo de gato e rosto humano, sete templos e quatro fortificações. Perante a ilegalidade, todas as obras ficaram suspensas.

Actualmente nas aulas de História fala-se de uma civilização antiga, que antes de atingir o seu apogeu, caiu em desgraça por falta do “papelzinho”!