domingo, 23 de fevereiro de 2014

Velório.

Estava sentado quatro cadeiras ao lado da filha. Apesar de mal a conhecer e de totalmente desconhecer o pai defunto, entrei na capela mortuária com a expressão sóbria a condizer com a ocasião. Todas as pessoas estavam sentadas, alinhadas em “U”, à volta do caixão, um nariz familiar, o da minha sogra, alguns arranjos de flores, o caixão entre duas colunas com velas acesas e arranjos florais por baixo e ao lado do caixão, uma ou outra conversa em tom arrastado para não descompor a ocasião…até que toca um telemóvel e algumas pessoas acordaram…com esperança, apesar de não conhecer o defunto, pessoa já idosa, olhei para o caixão!

Este dia, sábado, prometia ser igual aos outros, felizmente, e com um pormenor de classe, não chovia!
A manhã, passada em algumas tarefas domésticas, provocavam um sorriso à minha mulher, que com orgulho olhava para mim e dizia, “És um querido!”, enquanto  eu olhava para ela e respondia com um sorriso a pensar, “Logo no fim do futebol, vou à tasca com os suspeitos do costume…a malta da bola.”.
Já de noite, acabada a bola e instalados na “Canzoada”, estava eu na transição do primeiro para o segundo prato e a encher o sétimo copo, toca o telefone. Abano a cabeça e…”Fogoooo”, pouso o prato, dou um gole no copo de vinho e, “Não atendo.”, pensei. Para saber com quem eu não ia falar olho para o telemóvel e é a Cristina, a minha mulher!
- Olá Morzinho! – atendi – Tudo bem?
- Faleceu o pai da Maria.
Fiquei a pensar quem era.
- Que Maria? – perguntei.
Após uma breve explicação, a Maria é uma conhecida da Cristina, que me foi apresentada há muito tempo e depois disso voltei a vê-la mais uma vez.
- O funeral é amanhã. Vamos?
- Vamos. A que horas é? – pergunto.
- Às onze.
- Não posso. Tu sabes que tenho futebolada (com outros “suspeitos do costume”) a essa hora!
- Então vamos daqui a pouco ao velório?
- É isso,vai ao velório, fazes bem! – incentivo.
- Não…VAMOS, os dois.
- É isso Morzinho, vai!
Detesto, quando estragam o meu sábado ordinário!
Enquanto “comia” caminho, por entre montes, em direcção à casa mortuária de Rindo, tinha que transformar a minha sentida expressão de zangado. Muito facilmente cheguei ao local de velório, com uma expressão de extremo pesar, lembrando-me da época passada do meu clube, o Sporting!
Deixo a Cristina entrar à frente e cumprimento quem ela cumprimente e dou os pesares a quem ela os dá…e sento-me.
Após uma breve observação pela sala, respiro fundo e deixo-me “afundar” na cadeira. Sem me aperceber, para um senhor em frente a mim:
- Os meus pêsames!
- O quê? – pergunto sem perceber.
- É neto do Antunes? – pergunta-me o senhor.
- Não, nem o conhecia! – respondo, ficando a saber o nome do falecido.
A minha expressão de extremo pesar confundiu aquele senhor e de imediato parei de pensar no Sporting! Decidi manter uma expressão normal, pensando em…nada!
Desvio o meu olhar para a filha que recebia o consolo de uma senhora, certamente conhecida, com quem mantinha conversa!
- É dura a morte!
- É, é dura! – responde a filha.
- E a tua mãe, não conseguiu vir?
- Não, amanhã tem que se levantar cedo para fazer uma coisas antes do funeral!
- E está a sofrer muito? – insiste a senhora no seu consolo piedoso.
- Não! O meu pai sempre foi muito mau para ela, batia-lhe…
- Mas era bom pai? – interrompe a senhora sem deixar a Maria terminar a sua frase, tentando descobrir algo de bom naquele homem.
- Também não! Basicamente só nos teve! Nunca foi bom pai!
(“Foste um maroto, Antunes!”, pensei, olhando para o caixão)
- Mas ajudava lá em casa?! – insistia a senhora.
- Sim! Se fazer “nada” for ajudar! E ainda por cima agora estava acamado e a minha mãe já não tinha idade nem saúde para cuidar dele…
(Abstraí-me da conversa e olhei novamente para o Antunes, sentindo um verdadeiro pesar por ele)
- Vamos embora? – pergunta-me a Cristina.
- Sim, vamos!

Levantei-me, dei três passos até à Maria e:
- Parabéns!
- Obrigada!- respondeu-me.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Amigos básicos.

Costa, óptimo rapaz, de quem não se conhecem defeitos, é tido como um quase excelente partido para casar com a filha de quem as tem, não fosse o facto de não ser rico e por isso se mantém solteiro.
Mas, “Também não é rapaz de grandes méritos”, pensam as senhoras, mães das filhas da terra.
Estas mães com algum desdém dizem que ele é trabalhador, bom amigo, brando mas mora numa casa alugada, “vendo o copo meio vazio”, enquanto Azevedo, amigo de Costa, pelas mesmas razões “vê o copo completamente cheio”. Não que quisesse para si mais do que a amizade do Costa, já que Azevedo, desde muito cedo, se habituou “a levantar a crista” para as meninas, fruto, não de um qualquer ensinamento, mas sim de uma “coisa” interior que não consegue explicar…nem eu, conhecendo o Azevedo razoavelmente bem!
Costa é um óptimo rapaz, não por dizer “ámen” a toda a gente, mas por ser tolerante com os outros e ao mesmo tempo firme nas suas convicções, mas sabendo reconhecer quando está errado, por isso Azevedo, apesar de mais popular é capaz de admirar mais Costa, do que este a Azevedo. Se tivesse irmãs, e bastava uma, Azevedo tinha a certeza que a “impingia” a Costa, e só não “impinge” o único irmão que tem, por este já ser casado!
Entre Costa, óptimo rapaz, e Azevedo, de todas as diferenças existentes entre eles, desde as políticas, religiosas, preferência clubística,… e até vocais, visto que Costa já cantou num coro e Azevedo é o único ser vivo que continua a achar que canta benzinho, une-os aquilo que é mais forte numa amizade, pelo menos entre homens…são básicos!
São básicos como era a mecânica do Datsun 1200, que Azevedo teve quando adolescente, oferecido pelo seu padrinho, com motores fiáveis, e de tal forma transparentes no seu funcionamento, que até um cabeleireiro poderia dizer que percebia de carros!
Costa é assim, como um carro que se gosta logo na primeira voltinha e sentimos que é de confiança, à primeira conversa sente-se que ele pode ser nosso amigo, ficando a dúvida se não teremos “extras” a mais para sermos capazes de ser amigos dele!
E é esta característica de “básico”, não confundir com simplório, que Azevedo aprecia no seu amigo Costa, seus pensamentos “roncam” como o motor do Datsun, naturais, sem ser abafados e sem floreados. Por isso, e apesar das diferenças, aceitam-se e divertem-se com elas e entusiasmam-se com o que os une, o gosto por jogar à bola, o ginásio e as estórias que inventam estimulados um pelo outro!
Azevedo, ao longo da vida, conheceu muita gente com demasiados extras, que a qualquer momento, como um carro moderno mais vistoso do que o Datsun e cheio de electrónica, faz “shut down”! Azevedo, ainda hoje se lembra do Datsun 1200, sem direcção assistida, sem vidros eléctricos e o ponteiro de gasolina que não funcionava…mas que o espevitava mais do que qualquer outro carro!
Costa, excelente rapaz, é assim, simples e alegre, que apenas se desilude quando vai a um restaurante, pede bacalhau e lhe respondem: - Não há!

Pensando melhor, já que as mães das filhas desta terra não querem o Costa para genro, porque insistem em “ver o copo meio vazio”, Azevedo vai tentar “impingir” o seu amigo ao seu irmão…mesmo sendo casado!

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Alerta vermelho.

Sexta-feira, pós jantar. Enquanto via o noticiário, sempre com as mesmas notícias, sem nenhum desenvolvimento, que me fazem pensar que o Mundo parou na parte pior do “filme” eis o boletim meteorológico, “Para todo o fim de semana mau tempo, alerta vermelho e laranja para todo o país e todas as barras de portos de mar fechados à navegação.”.
Este estado de “nada de novo”, não me surpreende e como ser básico da raça humana que sou, nada me afecta, nem o mau tempo, porque todo o meu pensamento estava concentrado para este fim de semana mágico, que se repete há já muitos anos. Sábado à tarde, futebolada com os amigos e domingo de manhã, futebolada com os amigos…nada mais espectacular!
Quase no final do telejornal, a Cristina, minha senhora, entra na sala e, como uma cientista atenta aos fenómenos da natureza que prevê um Tsunami e alerta a população, avisa-me:
- Morzinho, o período está para me vir!
Este alerta é dado com meiguice, porque ela sabe que os próximos dias o ser pouco racional que uma mulher consegue ser vai desaparecer. Perante esta notícia todas as sirenes de perigo soaram e o verdadeiro e temido alerta vermelho foi dado. Pensei um palavrão e disse:
- Pronto Cristina, fizeste bem em alertar. Prometo que vou ter paciência contigo e não te deixo!
Toda esta frase soou-me a grande mentira, porque a minha vontade era desaparecer por uma semana, a forma mais fácil de aguentar uma mulher nestas condições! Tinha que fazer algo e ia ser nessa noite mesmo!
Mais tarde, quando nos deitamos, mesmo não sendo crente, mas quando o desespero aperta, agarramos-nos a qualquer coisa, rezei a todos os santos que existem e até inventei mais alguns a quem pedir ajuda com as minhas orações. Rezei ao Santo Edmundo do Paranho, à Santa Clarisse da Abelheira, ao São Tone de Finzes e à Santa Natália de Valdeirigo, dona da tasca onde costumo ir com os amigos, sábado à noite, como quem vai à missa, depois do futebol!
 Sábado de manhã, acordo e a Cristina ainda dorme. Aproximo a minha cabeça da dela e a respiração lembra-me o assobio de uma brisa que corre pelo mar a anunciar uma tempestade. Pelo sim, pelo não, volto a rezar e quando me apercebo que a Cristina está a acordar, salto da cama e vou para a cozinha. Dez minutos depois, regresso ao quarto e ela já estava desperta e sentada na cama e… nitidamente possuída pelo castigo que Deus aplicou a Eva por esta ter comido a maça…o período!
- Morzinho, olha o que preparei para ti! O pequeno almoço! – digo eu, com paninhos de lã.
- Não fizeste mais do que a tua obrigação. – responde-me autoritária, não deixando dúvidas sobre o seu estado.
Pousei a travessa com o leitinho e a torradinha, preparados com todo o cuidado, a medo, à beira dela.
- Então?! – pergunto, como quem quer fazer conversa, para dispôr bem.
- Então, o quê? – responde-me, como quem não quer conversa nenhuma.
Ela começa a tomar o pequeno almoço e eu, como um vassalo, deixo-me estar à porta do quarto, à espera de ordens, até que:
-A TORRADA ESTÁ QUEIMADA E O LEITE ESTÁ MUITO QUENTE. DESAPARECE.

Esta última palavra foi “doce” para os meus ouvidos…e desapareci por uma semana. Quando cheguei:
- Aonde foste Morzinho?
- Fui ali, tomar café. – respondi.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Lobo com pele de cordeiro.

Mais uma vez, a água do chuveiro escorria fria pelo meu corpo enquanto me ensaboava passando as mãos pelos músculos e auto apreciando os meus braços e tronco fortes e contraídos, estado que não se mantém por mais de dez minutos depois de acabado o meu treino no ginásio! Depois o corpo descontrai e só volta a esta condição “Adónica” no treino seguinte…que não sei quando será!
A meio do meu estado idilicamente “narcísico” de curta duração, ouço de um outro chuveiro uma voz de criança a dizer:
- Odeio isto!
“Como eu te compreendo!”, pensei e repensei, “Não é agradável tomar banho de água fria no inverno…e pagar!”.  Entretanto ouço uma voz melada de adulto a responder à criança:
- Mas é para o teu bem, filho!
“Banho, água fria, inverno, pagar”, esta associação de ideias, na minha cabeça, não fazia sentido, nem mesmo para manter as carnes rijas, que no meu caso tendem a mingar.
- Mas eu já te disse, que odiava isto aos cinco anos, odiava isto aos seis, e aos sete, e oito, continuei a detestar isto aos nove, e odeio agora com dez anos! – disparou o miúdo.
“Realmente, andar a tomar banho de água fria desde os cinco anos não é fácil”, pensei, compreendendo a forma rude com que o miúdo respondeu e começando a não achar o adulto bom pai!
Entretanto o corpo inchado de músculo relaxa e é normalmente nesta altura, quando o corpo volta ao normal, que paro de me ensaboar e termino o meu banho…mas não desta vez! Solidário com o miúdo que injustamente toma banho de água fria desde os cinco anos, mantenho-me debaixo do meu chuveiro, mas desligado. Do outro lado a conversa continua e volto a ouvir a voz melada:
- Mas tens que compreender filho, isto faz bem ao teu crescimento! – responde o pai.
- Mas já te disse, DETESTO ISTO, DETESTO! – berra a criança.
Eu que tomo banho de água fria no meu ginásio muitas vezes (e não por minha vontade), sei o quanto isso é desagradável, por isso compreendo a revolta do miúdo que toma desde os cinco anos, mas o tom daquela resposta roçava a má-criação!
A voz melada do pai, sem alterar o tom e volume, faz-se ouvir:
- Mas foste para o futebol e não gostaste, foste para o ténis e não gostaste, foste estudar e não gostaste, foste para os kartings e não gostaste, és filho e não gostas…
“Não gostou dessas coisas e pões o teu próprio filho a tomar banhos de água fria! Claro que ele não gosta!”, pensei, com a minha revolta em crescendo, e com vontade de pregar um chapadão no pai!
…foste para o ballet e não gostaste, pus-te nas explicações e não gostaste, andas na piscina que te faz tão bem…e odeias?!!!
“Ops! Afinal o miúdo não detesta tomar banho de água fria…ele odeia é andar na piscina!”

Mantive-me debaixo de um chuveiro com água fria, solidário com a pessoa errada!