Desde que me lembro de mim como pessoa, lembro-me do Maior
sempre presente, mesmo quando estava ausente!
Os domingos na casa do Maior eram cheios, onde ele reunia a
família e no topo da mesa, onde se sentava, os olhares e as conversas passavam
por lá…era bem-disposto e gostava de conversas animadas e para completar este
quadro de desordem feliz, lá estava a Pantera, a cadela da casa!
A meio da tarde rumávamos ao Cine-Teatro Alves da Cunha, com
balcão e onde a primeira fila da plateia eram cinco cadeiras, propositadamente
lá instaladas, para mim, para o meu irmão e os meus primos. Estávamos tão
próximos da tela que éramos engolidos por ela e sentíamos-nos personagens dos
filmes!
O Cine-Teatro Alves da Cunha, foi mandado construir pelo pai
do Maior, depois de em finais da década de 20 do século passado, a sala de
espectáculos existente na Trofa, ter-se incendiado. Além da sala de
espectáculos, o pai do Maior tinhas outros negócios, que lhe valiam respeito,
mulheres e muitos filhos bastardos. Tudo isto associado ao fervor republicano,
e os fervores não são bons conselheiros (digo eu), o pai do Maior deixou-lhe de
herança, não dinheiro, mas o gosto pelas mulheres e uma vontade férrea para
fazer o seu caminho!
Já aqui vos mostro que o Maior não é Deus, não quero desumaniza-lo,
o Maior era gente!
Gente com a certeza de que o caminho para ter as coisas era
o trabalho e ainda adolescente trabalhava numa fábrica e no final fazia uns
biscates de electricista. Um desses biscates, num final de tarde, foi na
fábrica de chapéus do tio do Maior. Imagino-o a passar os olhos pelas
empregadas, mas ao olhar para uma, os olhos param e não avançam. Ela chama-se
Maria e o Maior ficou encantado!
Ficando a saber que a Maria tinha vários pretendentes, o
Maior tinha a seu favor o facto de ser sobrinho do patrão, mas não queria usar
essa arma. Um dia chegou à fala com ela oferecendo-lhe um quilo de figos.
Começaram a namorar, casaram e tiveram duas filhas. E desde
que ofereceu esse quilo de figos à Maria, a mulher mais admirável e das mais
bonitas que alguma vez conheci, a vontade férrea do Maior em busca de trabalho,
para a família estar bem, levou-os por vários sítios. Para a Maria, na altura,
apesar das dificuldades, o mundo perfeito era quando estavam os quatro, juntos!
Novamente na Trofa e já definitivamente instalados, uma
empresa com duas áreas de negócios começa a crescer, fruto do trabalho do
Maior. Uma de electricidade, que lhe valeu instalar a rede eléctrica em
Trás-Os-Montes (para quem estiver a ler este texto e estiver nesta região, é
provável que todos os postes que ainda existam de madeira, tenham sido instalados
por ele e os empregados), e outra, fruto de um encanto de menino, o cinema!
Tenho bem presente, alguns dias, ainda pré-adolescente, em
que o Maior me tirava a um dia de brincadeira e punha-me a levantar postes com
os empregados. Desde cedo sempre quis mostrar a mim, ao meu irmão e aos meus
primos, que sem trabalho não se consegue nada…esse é o segredo…nós não entendíamos!
Com os anos a parte eléctrica foi dando lugar ao cinema e o
Maior na década de 80 do século passado era o maior empresário cinematográfico
do país, não contando com a Lusomundo, que além de exibidores, também eram (e
ainda são) distribuidores, de quem o Maior era o melhor cliente.
Depois veio o vídeo e mais tarde os Multiplex e já ninguém
ia aos Cine-Teatros ver filmes. O que se ganhou foi-se perdendo, tendo o Maior vendido
a sua última casa, o Cine-Teatro de Anadia, à Câmara local.
Apesar do que ele construiu e perdeu, via nele sempre uma
inocência de criança, que não entendia e que o prejudicava. O Maior acreditava
nas pessoas, acreditava na palavra dada e no aperto de mão. Desiludiu-se
imensas vezes e mesmo assim não deixava de acreditar nas pessoas!!!
Após a “queda” e já mais velho a vontade de continuar a
ganhar mundo e de trabalhar eram injecções de rejuvenescimento…e em vez de
descansar carregou o cinema às costas!
Se em excursões, as pessoas do interior vinham ver o mar, o
Maior e o seu cinema itinerante levaram a sétima arte às pessoas do interior.
Tive a felicidade de, nas minhas férias da escola, fazer milhares de quilómetros
com o Maior. Não raras vezes, quando chegávamos ao fim do mundo, eu perguntava:
- Já chegámos?
E ele respondia:
- Não! Ainda falta um bocadinho.
Quase sempre, quando parávamos para além do fim do mundo, a
surpresa acontecia! Com o Maior fiquei a saber o quanto Portugal é bonito e a
perceber as suas gentes…e a ele também!
Ele afinal era como aquelas pessoas do interior, gente de
uma palavra e o aperto valia o mesmo que uma assinatura…confiavam uns nos
outros! Por isso ele se sentia tão bem, lá!
Foram milhares de quilómetros, milhares de discussões,
milhares de pontos de vista diferentes…e milhares de abraços que não te dei!
Pensei que tinha todo o tempo do mundo, afinal eras o Maior…e dou por mim a
pensar cada vez mais como tu!
Em Março de 2007, a mulher sempre presente, a Micas, como o
Maior gostava de a tratar, devido a doença prolongada morreu numa madrugada de
sexta para sábado, às quatro da manhã. O Maior passou o resto da noite a falar
com a Micas e tenho a certeza que lhe pediu desculpa de algumas coisas…afinal o
Maior é humano!
A morte da Maria, a pessoa mais admirável que conheci, foi
uma grande perda!
O maior sentiu muito, mas continuou a trabalhar, voltou a
casar e a divorciar-se vinte dias depois (é mesmo o Maior), e eu, o meu irmão e
um primo, continuávamos a ir com o Maior, por vezes, a uma tasca a Vizela,
comer e beber, que alimentava acesas discussões, muitos pontos de vista
diferente…e quem estivesse a observar, facilmente se apercebia o quanto aquelas
pessoas se gostavam!
Aos oitenta e quatro anos o corpo do Maior começa a
fraquejar e sinais de senilidade começaram a aparecer. Quando a boa vontade já
não era suficiente para cuidar dele, foi para um lar, na Trofa. “Arrebitou” com
a presença das meninas que cuidavam dele e mesmo na doença, levou-nos para um
mundo que já existiu e no qual mergulhávamos com ele!
Os nossos encontros eram viagens no tempo, ao estilo “Good bye Lenin”, onde na cabeça do Maior estávamos ainda na década de oitenta, e
falávamos da programação para os cinemas, se tinha ido buscar o amplificador à
oficina e enviado a publicidade para a Régua,…e de repente o lampejo de
realidade e de falta surgia com a pergunta:
- A Micas?
A saúde continuou a degradar-se e começou a fazer umas
“visitas” ao hospital, cada vez mais prolongadas. Na última “visita”, não iria
regressar ao lar e na minha última visita que lhe fiz, estava ali o corpo do
Maior, que só respirava, mas ele já não estava lá…mas os olhos brilharam e
captaram a minha atenção!
Estava sozinho. Debrucei-me ao nível da cabeça dele e
“espreitei” para dentro do seu olhar. No fundo dos olhos do Maior, via-o
sentado no escritório a preparar a programação para o mês de Dezembro nos seus cinemas…e sorri! Dois dias depois, morreu.
21 de Dezembro de 2013, o Maior foi enterrado depois de décadas
a “comer terra” como diria Miguel Torga e pela primeira vez vi um padre no
final da celebração da missa a falar do defunto com um sorriso na boca e da
alegria que foi ter conhecido tamanha figura, há muitos anos atrás, em Rio de
Moinhos!
O Maior, pela sua actividade única (sem nunca ter pedido ou
recebido subsídios), teve cartas de elogios (sapatadinhas nas costas) de
governantes, foi notícia em tudo o que é jornais, revistas e canais de
televisão.
O Maior chama-se Joaquim da Costa Azevedo e é meu AVÔ!
Não me
dêem os pêsames, dêem-me os parabéns por ser neto do Maior!