sábado, 27 de julho de 2013

Daniel, o vampiro.

Lembro-me perfeitamente desse final de tarde em que o Daniel, convictamente, nos transmite, a mim e ao António, que faz parte de uma lista candidata à freguesia onde reside.
Prático como sempre, o António pergunta:
- Vais delapidar o erário público?!
- Não! – responde prontamente o Daniel, prosseguindo: – Tenho um projecto para o bem da comunidade!
A sinceridade expressa nas palavras no Daniel, causou-nos surpresa… parecia um menino grande que ainda acredita no “Pai Natal”!
- Não te dou muito tempo para seres corrompido pelo lamaçal que é o meio político. – alerta o António, fino como um rato, que aos oito anos já sabia que o “Pai Natal” que lhe entrava pela casa, era o Tio Fernando, disfarçado.
Na primeira reunião do Partido a que pertence, Daniel vai preparado com propostas para serem discutidas, mas os restantes membros passam o tempo a praticar os vários tipos de “cumprimentos” que terão que ser aplicados durante a campanha: O beijinho às crianças, o abraço acompanhado de vários beijos a peixeiras e floristas, a palmadinha nas costas aos idosos, o chapadão no braço dos jovens adultos (porque cria uma empatia natural),… e o cumprimento firme acompanhado de um sorriso piedoso à pessoa de cadeira de rodas, que sempre aparece.
Urge tratar com urgência os assuntos da campanha e nova reunião é marcada para o dia seguinte.
Novamente, crente e desfasado da realidade, como a Miss Universo que pede paz para o mundo, Daniel aparece com o mesmo dossier do dia anterior, empolgado para a discussão de temas úteis à comunidade, mas desta vez, os restantes membros do partido passam o tempo a praticar expressões de naturalidade quando o imprevisto acontece, como na última campanha, quando o candidato ao receber um beijinho de uma idosa, fica com a dentadura pendurada na orelha. Nesta situação é prudente o candidato recolocar a dentadura na boca da idosa, chamar-lhe de “querida” e controlar a expressão de nojo!
Várias reuniões depois, e naquela mais importante em que são distribuídos a todos os elementos pertencentes à lista, os horários das missas, Daniel insiste em apresentar a sua proposta. Foi uma desilusão para o aparelho partidário, que esperava que Daniel apresentasse nomes para colar os cartazes e em vez disso, o “político honestozinho”, propõe a criação de um condomínio público, para se cuidar dos espaços exteriores das casa dos habitantes da freguesia, tornando-a num local agradável para viver.
No dia seguinte, a notícia desta proposta correu a freguesia e despertou o apetite dos lobbys dos Hortos, que se apressaram a ir a casa do Daniel, tentá-lo com negociatas em troca de um jardim luxuriante mais manutenção. Firme como uma virgem que quer casar imaculada, Daniel insistia no raio da honestidade!
Certo dia numa acção de rua, quando uma senhora bastante idosa lhe pergunta se, caso seja eleito, vai fazer milagres, Daniel com toda a educação, reponde:
- Não minha senhora! Os milagres acabaram com Jesus e os apóstolos. E eu não sou apóstolo e muito menos Jesus!
A resposta sincera de Daniel, deixou todo o aparelho partidário irritado. O Partido tinha perdido mais um voto, porque, Daniel, mais uma vez não respondeu o que o eleitor queria ouvir!
Sem alternativa, membros do Partido metem o Daniel num colete de forças e levam-no a uma clínica privada, onde lhe fazem uma hemodiálise política. Tiram-lhe o sangue bom e metem-lhe sangue corrupto. A transfusão foi feita a tempo! Daniel deixou de ter princípios e convicções e a sua lista venceu!
Daniel tem agora um jardim luxuriante e até o quintal do dependente do RSI, tem plantas exóticas…e assim a Junta de freguesia caiu na bancarrota, enchendo a “pança” dos Hortos.

Quem tinha razão era o António!

sábado, 20 de julho de 2013

Acordem-me!

Vivia-se o fervor da campanha eleitoral.
Todos os candidatos tinham a perfeita noção do estado do país. Cada um deles tinha o seu projecto e programa eleitoral, todos diferentes, mas cada um deles feito a pensar no melhor para a população.
Em todos os comícios de cada candidato, estava presente um juiz, pago a peso de ouro, que ligava a máquina detectora de mentiras ao candidato ao “poder”, durante os discursos! Por cada mentira, a máquina emitia de forma bem audível a palavra-passe “ALDRABÃO”, que dava o sinal para o juiz, pago a peso de ouro, mostrar o cartão vermelho e expulsar o candidato e todo o seu partido da campanha eleitoral!
Estes juízes, pagos a peso de ouro, também acompanham os candidatos em visitas a escolas, lares,…, e feiras. Por cada sorriso dirigido a uma criança ou beijo numa peixeira, que não sejam sinceros, os candidatos vão acumulando infracções, correndo o risco de não se poderem candidatar durante os próximos 20 anos! Nestas ultra maratonas eleitorais são muitos à partida e raros à chegada, graças ao juiz…pago a peso de ouro…que elimina, na altura certa, os que iam afundar o país!
Estou a assistir a um desses comícios e a máquina dispara, “ALDRABÃO”, o juiz saca de cartolina vermelha e dá ordem de expulsão ao candidato, eu olho para o lado e vejo a miúda mais gira da freguesia a correr para mim de braços abertos…
Tititititi, tititititi, tititititi,…!

Assustado o meu corpo estremece! Caio de uma dimensão para outra, olho para o lado e vejo a miúda gira deitada na cama…e aquele despertador continua a assustar-me!
- Que raio de sonho! – suspiro baixinho.
Enquanto tomo o pequeno-almoço, na televisão aparece um bandido, mesmo bandido, que, mesmo preso, é candidato autárquico! Num raro lampejo mental aquela hora da manhã, tive uma ideia brilhante, “Vou criar e fazer parte de uma lista encabeçada pelo Ronfe!”.
Ronfe é um burro Azinino, que pasta num campo em frente a minha casa, propriedade de um senhor amigo, e tenta montar tudo o que lhe aparece…Ronfe é o candidato perfeito! A troco de um lugar na lista, o dono do Ronfe, cedeu-mo.
Abre a época de campanha. Os comícios sucedem-se uns atrás dos outros e como não há juiz nem máquina detectora de mentiras, elas sucedem-se umas atrás das outras, os beijos e sorrisos encenados brotam como água da fonte….Ronfe lambusa toda a gente, mas está a perder terreno. Enquanto eu, porta voz do Ronfe, prometo sonhos, os outros candidatos prometem delírios e denigrem a imagem de Ronfe dizendo que ele não tem passado político!
Chega o último dia de campanha e as sondagens dão o último lugar a Ronfe. Num esforço financeiro final, distribuem-se canetas com um assobio que faz de tampa e bandeiras e autocolantes com a fotografia de Ronfe e o dizer – “Ronfe é burro, mas não é parvo”, e em total desespero bebo uma garrafa de whisky e “snifo” heroína, para o discurso final!

No domingo, ao final da tarde, Ronfe é declarado vencedor. Dizem que a promessa, feita no discurso final, de fazer passeios intergalácticos, nos autocarros da “Pacense”, foi decisiva!

Ronfe é um governador deste país e desde que tenho consciência de mim como ser político, estou à espera de ouvir “tititititi, tititititi, tititititi,…”, para acordar deste pesadelo!

domingo, 14 de julho de 2013

Saída profissional!

Tive a infelicidade de ser uma criança normal!
Não gostava das aulas, mas gostava do recreio e de aprender; gostava do Dartacão e do Tom Sawyer, andava de fisga enfiada na meia, não percebia porque as raparigas não eram iguais aos rapazes, nas férias brincava de sol a sol, na rua, com os amigos, não percebia o que era a política e o que gostava mesmo… era de jogar à bola.
Novinhos e movidos por esse gosto “de jogar à bola”, eu e os meus amigos começámos a jogar futebol nos “iniciados” do clube da minha terra, o Trofense, ao contrário de outras crianças, estas mais estranhas, que não tendo gosto nem jeito para a bola, juntavam-se em volta de um “líder”, e seguiam-no sem saber porquê, mas tinham o privilégio de colar cartazes! Estes grupos que começaram a proliferar na década de 80, na mesma altura em que apareceram os glutões no detergente da roupa…são as “Jotas”.
Enquanto eu e os meus amigos, sob a orientação dos nossos treinadores, dávamos o máximo em campo pela nossa equipa e sonhávamos ser como os nossos ídolos e ganhar muito dinheiro, os outros, além de colar cartazes, nas reuniões, gastavam o tempo a jogar ao Monopólio. Aprendiam a comprar casas na Rua Augusta e hoteis na Rua do Ouro, a fazer negociatas com os amigos e apagaram a “casa” da prisão e rasgaram a carta que dizia - “vai directamente para a cadeia, sem passar pela casa de partida”! Já nós, se infringíamos as leis do jogo, éramos penalizados. Na minha carreira ultra-amadora de criança, acumulei 2 cartões vermelhos, por agarrar o adversário quando este se isolava. E se o empenhamento durante a semana, nos treinos, não fosse digno, não havia lugar para nós na convocatória, ao contrário das “Jotas”, onde há sempre lugar para todos, nem que sejas retardado…e onde só não aceitam pessoas em estado vegetativo, por não cumprirem o requisito de fazer a cruz, em altura de eleições!
Agora que sou um adulto normal, tenho a infelicidade de ser governado por gente anormal!
Lembro-me de que eu e os meus amigos, como muitos milhares de crianças que jogavam futebol por esse país fora, num qualquer momento deparámos-nos com a realidade que o sonho de ser jogador não sustentava todos, apenas meia dúzia…os mais dotados. Paciência!
Continuámos a estudar e depois a trabalhar e a descontar para um Orçamento, em que parte dele é para pagar os “jobs for the boys”, em português “os tachos”, para os que em vez de obterem uma profissão aprenderam a adulterar o Monopólio e ficaram à espera que lhes dessem um curso…para nos governar!

Jovem, tens jeito para o futebol? Esquece! Queres ser piloto de aviões? Esquece! Queres ter uma vida digna e séria e ser respeitado por isso? Esquece! Convidaram-te para uma sociedade no euromilhões? Esquece! Uma miúda muito rica convidou-te para casar? Esquece! Queres ser padre? Esquece!
Nada é mais certo do que colar cartazes, não do circo que vai à tua terra…mas de um partido político qualquer!

sábado, 6 de julho de 2013

Vida social.

Quando o ser humano pensa que tudo está bem, tem a tendência natural para se distrair e prestar menos atenção a quem o rodeia. Bem ou mal é essa a nossa natureza…e contrariá-la, só com uma check-list dos esforços diários que devemos fazer, um pouco como verificar o óleo e a água do nosso carro que já tem uns anitos!
Estando eu no 2º round da vida marital com a mesma pessoa do 1º (garantindo-me entrada directa para o céu), pensava que tinha aprendido com os erros de defesa do 1º assalto e melhorado a esquiva…e relaxei!
Perante isto, sou abordado pela Cristina, que teima em levar o casamento até ao ultimo assalto, levantando-me quando estou “adormecido”, para que eu não perca por KO. O casamento é uma luta, que nenhum dos intervenientes deveria querer perder!
- Não temos vida social! – diz ela, prosseguindo – Estamos fechados em nós mesmos, numa redoma! Temos que socializar!
A Cristina tinha razão, e estas palavras depois do jantar numa noite de verão, fizeram recuar a minha memória de forma pachorrenta para a tarde desse mesmo dia, em que encontrei um dos meus raros bons amigos…que raramente o vejo!
- Então Miguel, tudo bem? Já não te vejo há algum tempo, onde tens parado? – pergunto.
- No Facebook. – responde-me.
- Aonde fica? O pessoal pára lá? – pergunto, pensando que o Facebook é um café ou um bar novo!
- Pára lá toda a gente. – diz o Miguel
- Mas o bar não tem porteiro, para fazer selecção?
- Porteiro? – exclama o Miguel, sem estar a perceber o sentido da conversa.
Depois de desfeito o mal entendido, o Miguel explica-me o que é o Facebook e qual o seu uso. Sem saber, eu e a Cristina estávamos encarcerados no passado e o meu raro amigo “abriu-nos a porta”.
Desperto da memória da tarde, e regressado à mesa de jantar, penso nas palavras que ouvi da Cristina.
Ultimamente temos estado com as pessoas de família de quem mais gostamos, jantado uma vez ou outra com amigos e abusado no nosso espaço exterior com umas churrascadas rodeados de gente…temos convivido, vemos e sentimos quem mais gostamos, ou seja…envelhecemos jovens e sem vida social.
Perante este cenário, para recuperar as vivências e aguentar mais um round matrimonial, abdiquei da pintura do carro e com o dinheiro para ele destinado comprei outro computador!
No sábado à noite dessa semana, eu e a minha senhora regressamos à vida social activa, ela na sala e eu no escritório, cada um no seu computador, fizemos “likes” e comentários e vi o Miguel…e toda a gente!
Neste momento já temos amigos que nunca os vimos, partilhamos coisas e somos parte integrante desta rede social, que nos deu uma vida e pujança para os restantes rounds matrimoniais…apesar de raramente ver a Cristina, mesmo estando sentada ao meu lado, cada um com o seu computador, em prol de uma vida social!

Por vezes, olhamos um para o outro e sem dizermos nada, saímos de casa e damos a mão! Passeamos, com o cuidado de não sermos vistos, e convivemos com outros clandestinos!