Desde que larguei a mão da
minha mãe e ganhei pernas para correr por minha conta, as nódoas negras e os
arranhões sempre me acompanharam. A certeza, na criancice em finais dos anos 70
e inícios de 80, de que éramos normais comprovava-se através da forma como
chegávamos a casa. Saíamos aprumados para a escola e chegávamos de calças rotas
e o corpo marcado por arranhões. No nosso guarda-roupa não havia calças sem
joelheiras ou camisas e camisolas sem cotoveleiras. Um guarda-roupa “impec” de
uma criança desses tempos era um sinal de que era doente, sem poder ter uma
vida normal! Lembro-me das 3 ou 4 vezes que cheguei a casa aprumadinho, da
mesma forma como a minha mãe me tinha despachado para a escola, e de imediato
me deitou na cama e me tirou a temperatura.
Também assim eram as
personagens da banda desenhada, e os nossos heróis tinham brincadeiras iguais
ás nossas e caíam abaixo de árvores e muros ou entravam em lutas de capa e
espada, como o Tom Sawyer ou o Dartacão.
Todos queríamos um dói-dói a valer, que contasse uma
estória heróica!
O apogeu do dói-dói aconteceu na 3ª classe e fez do
Filipe (nome quase fictício) herói por meia hora! Correu pela escola a notícia
de que o Filipe tinha partido o queixo e todos efabulávamos se teria sido à
porrada contra 5 ciganinhos! Depois de regressado à escola com um penso no
queixo, o Filipe conta como tudo aconteceu:
- Ia a andar… tropecei sozinho
e caí de queixos!
Ouvir isto foi a desilusão
completa e um pensamento trespassou a cabeça de todos os meninos: “Que nabo!”.
Quanto a mim, passei sempre de
classe e passei sempre ao lado de um dói-dói
digno desse nome!
Veio a adolescência e os
heróis dos desenhos animados foram substituídos pelos heróis criados pelo
cinema, o Conan cujas marcas no corpo contavam combates contra exércitos, ou
Indiana Jones, com uma cicatriz no queixo, que ao contrário da do Filipe,
contava uma grande aventura e…Ramboooooo, que se lançava de uma escarpa, caía
em cima de uma árvore, cujos ramos lhe iam amparando a queda e em vez de
morrer, cozia a sangue frio um corte no braço!
Inspirado por estes heróis da
grande tela, nunca virei a cara aos confrontos, que geralmente aconteciam após
as matinés no “Cine-Teatro Alves da Cunha”, em que nós, os rapazes que já
desfazíamos a barba há mais de 7 meses, saíamos do cinema possuídos pelo espírito
do Rocky ou do Bruce Lee! Estas lutas em vez de marcas, terminavam geralmente
com a partilha de uma cerveja entre os intervenientes e um bolo Mil-folhas!
Os anos passaram depressa,
parecendo que a adolescência foi há 3 meses atrás, mas o tempo trouxe a idade adulta
e…comportamentos adultos são exigidos!
Como tal, não se vê adulto a
explorar túneis em fábricas abandonadas,a jogar à bola no meio da estrada,… nem
a saltar do 2º andar de uma obra para um monte de areia! A grande esperança do
adulto de hoje, sem dói-dói digno
desse nome adquirido na adolescência ou enquanto criança, são as futeboladas com os amigos.
Comentamos com admiração,
quando alguém parte a tíbia e o perónio ou tem uma ruptura TOTAL dos
ligamentos, e com algum desprezo, os fraquinhos que no máximo têm um papo…em
que basta chegar gelo e no próximo jogo lá estão outra vez…a estorvar!
No adulto de hoje, o tipo de
lesão identifica a sua qualidade técnica como jogador. Isto alarmava-me…bastante!
Foi num fatídico sábado à
tarde, na futebolada costumeira com
indivíduos que aspiram a um “papo” que sofri uma pancada no joelho. Fui directo
para o hospital.
Quando o médico me pergunta
como aquilo aconteceu, esclareço-o que sou um óptimo jogador e para ele contar
com o pior! Após vários exames inconclusivos fui para casa com a perna
imobilizada e de muletas…certamente tinha rasgado o menisco e tinha ruptura
TOTAL dos ligamentos. Era olhado com admiração…tinha um drible muito bom!
Dias depois na consulta, que
eu pensava ser a primeira de muitas, o Sr. Doutor aparece-me com um sorriso na
boca:
- Doutor, não venha de sorriso
e com um discurso preparatório para me dizer o pior! Vá directo ao assunto. –
pedi-lhe de forma firme é já conformado com a perspectiva de operações e meses
de paragem!
- Muito bem Sr. Calheiros, a
parte boa é que tem que abrandar a actividade física durante três semanas, a
parte má…era só um PAPO!