sábado, 29 de junho de 2013

Em busca do “dói-dói” perdido!

Desde que larguei a mão da minha mãe e ganhei pernas para correr por minha conta, as nódoas negras e os arranhões sempre me acompanharam. A certeza, na criancice em finais dos anos 70 e inícios de 80, de que éramos normais comprovava-se através da forma como chegávamos a casa. Saíamos aprumados para a escola e chegávamos de calças rotas e o corpo marcado por arranhões. No nosso guarda-roupa não havia calças sem joelheiras ou camisas e camisolas sem cotoveleiras. Um guarda-roupa “impec” de uma criança desses tempos era um sinal de que era doente, sem poder ter uma vida normal! Lembro-me das 3 ou 4 vezes que cheguei a casa aprumadinho, da mesma forma como a minha mãe me tinha despachado para a escola, e de imediato me deitou na cama e me tirou a temperatura.
Também assim eram as personagens da banda desenhada, e os nossos heróis tinham brincadeiras iguais ás nossas e caíam abaixo de árvores e muros ou entravam em lutas de capa e espada, como o Tom Sawyer ou o Dartacão.
Todos queríamos um dói-dói a valer, que contasse uma estória heróica!
O apogeu do dói-dói aconteceu na 3ª classe e fez do Filipe (nome quase fictício) herói por meia hora! Correu pela escola a notícia de que o Filipe tinha partido o queixo e todos efabulávamos se teria sido à porrada contra 5 ciganinhos! Depois de regressado à escola com um penso no queixo, o Filipe conta como tudo aconteceu:
- Ia a andar… tropecei sozinho e caí de queixos!
Ouvir isto foi a desilusão completa e um pensamento trespassou a cabeça de todos os meninos: “Que nabo!”.
Quanto a mim, passei sempre de classe e passei sempre ao lado de um dói-dói digno desse nome!
Veio a adolescência e os heróis dos desenhos animados foram substituídos pelos heróis criados pelo cinema, o Conan cujas marcas no corpo contavam combates contra exércitos, ou Indiana Jones, com uma cicatriz no queixo, que ao contrário da do Filipe, contava uma grande aventura e…Ramboooooo, que se lançava de uma escarpa, caía em cima de uma árvore, cujos ramos lhe iam amparando a queda e em vez de morrer, cozia a sangue frio um corte no braço!
Inspirado por estes heróis da grande tela, nunca virei a cara aos confrontos, que geralmente aconteciam após as matinés no “Cine-Teatro Alves da Cunha”, em que nós, os rapazes que já desfazíamos a barba há mais de 7 meses, saíamos do cinema possuídos pelo espírito do Rocky ou do Bruce Lee! Estas lutas em vez de marcas, terminavam geralmente com a partilha de uma cerveja entre os intervenientes e um bolo Mil-folhas!
Os anos passaram depressa, parecendo que a adolescência foi há 3 meses atrás, mas o tempo trouxe a idade adulta e…comportamentos adultos são exigidos!
Como tal, não se vê adulto a explorar túneis em fábricas abandonadas,a jogar à bola no meio da estrada,… nem a saltar do 2º andar de uma obra para um monte de areia! A grande esperança do adulto de hoje, sem dói-dói digno desse nome adquirido na adolescência ou enquanto criança, são as futeboladas com os amigos.
Comentamos com admiração, quando alguém parte a tíbia e o perónio ou tem uma ruptura TOTAL dos ligamentos, e com algum desprezo, os fraquinhos que no máximo têm um papo…em que basta chegar gelo e no próximo jogo lá estão outra vez…a estorvar!
No adulto de hoje, o tipo de lesão identifica a sua qualidade técnica como jogador. Isto alarmava-me…bastante!
Foi num fatídico sábado à tarde, na futebolada costumeira com indivíduos que aspiram a um “papo” que sofri uma pancada no joelho. Fui directo para o hospital.
Quando o médico me pergunta como aquilo aconteceu, esclareço-o que sou um óptimo jogador e para ele contar com o pior! Após vários exames inconclusivos fui para casa com a perna imobilizada e de muletas…certamente tinha rasgado o menisco e tinha ruptura TOTAL dos ligamentos. Era olhado com admiração…tinha um drible muito bom!
Dias depois na consulta, que eu pensava ser a primeira de muitas, o Sr. Doutor aparece-me com um sorriso na boca:
- Doutor, não venha de sorriso e com um discurso preparatório para me dizer o pior! Vá directo ao assunto. – pedi-lhe de forma firme é já conformado com a perspectiva de operações e meses de paragem!
- Muito bem Sr. Calheiros, a parte boa é que tem que abrandar a actividade física durante três semanas, a parte má…era só um PAPO!

Continuo um adulto, entre muitos, que continua à procura do dói-dói perdido!

sábado, 8 de junho de 2013

Possessão.

Mais por observação dos outros do que propriamente por educação e formação, nunca acreditei no mundo metafísico, demónios e intervenções divinas, ficando sempre um pouco perturbado quando ouço de gente, principalmente jovem e bem formada, a expressão – “Foi porque Deus quis!”
Esta expressão se utilizada como desbloqueador para pôr fim a uma conversa sobre a queda de skate do Caló, que foi parar ao hospital para lhe chegarem Betadine, é aceitável, mas como explicação da distracção do jovem skater, como se não estivéssemos sós no mundo, isso é estúpido…pensava eu até um dia destes!!!

A minha senhora depois de chegar a casa com mais um par de sapatos, a minha expressão foi a mais natural do mundo:
- Outros?!!! – exclamei, e de seguida aplico outra exclamação, para não ferir susceptibilidades e evitar uma discussão: – São muito bonitos!
Rapidamente esclareceu-me que, tal como o Gaspar, também tem uma folha de cálculo Excel e perspectiva utilizá-los no casamento de um dos primos, que agora ainda estão na casa dos vinte, e que mal será se pelo menos um não se casa!
É esta visão que a Cristina tem enquanto mulher, que a mim, homem, me ultrapassa! E ao longo dos anos, com o “navio”, navegando bem ou menos bem, sempre assumi isto como normal…até há poucos dias atrás.
Estávamos num final de tarde, na Rua Conde S. Bento, na Trofa, a minha terra. Esta é a rua comercial por excelência, com só metade das lojas fechadas, sobrando algumas de decoração, que são as favoritas da Cristina.
Na primeira montra avistamos uma peça sobre a qual a Cristina comenta:
- Que bonita, ficava mesmo bem na nossa sala!
Com este comentário, não digo nada, faço um biquinho, como quem quer assobiar e fico ligeiramente tenso e preso de movimentos e penso para mim – “Fogo, ainda só estamos no início da rua”.
Ainda havia muita montra para ver, quando, no meio de algum espanto, ouço da Cristina:
- Mas já temos em casa 34 peças iguais ou parecidas com esta. Não vou comprar!
Percorremos o resto da rua sem que a Cristina fizesse alguma compra, como que tendo desistido da Folha de Cálculo do Gaspar, que “dispara” quase sempre ao lado!
À noite, já a Cristina dormia, e eu perturbado com aquele final de tarde, fazia zapping na televisão e parei no Fox Movies, onde estava a dar o filme “O exorcismo de Emily Rose”. Estava a começar e vi-o até ao fim. Desligo a televisão e enquanto olho para a Cristina sou assombrado pelo pensamento – “Será que estás sob posse demoníaca?!”
Este dia foi um novo início para mim, onde comecei a perceber que existem forças que nos ultrapassam e que escapam à nossa capacidade de entendimento!
Despertamos cedo e ao pequeno almoço pergunto:
- Vamos fazer compras desnecessárias, mas bonitas?
A Cristina fita-me durante alguns segundos. Pensava eu que a apreciar a minha beleza logo pela manhã, e responde:
- Estás tolo! Parece que o dinheiro não custa a ganhar!
Tentei disfarçar o melhor possível a minha aflição. A minha mulher estava possuída, tinha que fazer algo!
À noite, no regresso a casa, de carro, a Cristina adormece. Era agora ou nunca, tinha que fazer um exorcismo. Rapidamente tomei a direcção do IKEA.
Lá chegados e pela primeira vez contra vontade, a Cristina passeava-se nos corredores e eu iniciei o exorcismo, utilizando “água-benta comercial”:
- Morzinho olha que sofá lindo,…olha que mobília de quarto espectacular, olha que tapetes belos, vamos comprar, vamos,…vê-me só a categoria deste quebra-nozes,…!
Eu dava o meu melhor neste exorcismo, mas o espírito dentro da Cristina mantinha-se frio e calculista, mas não podia desistir, tinha que recuperar a minha mulher!
- Vai-te espírito maldito! – grito, enquanto “esfrego” umas toalhas de mesa na cara da Cristina.
Nesta altura sou chamado à atenção por um empregado do IKEA.
O desepero era total, quando à saída, a Cristina repara:
- Que cadeiras de esplanada bonitas!
Apesar de já termos trinta daquelas cadeiras, os meus olhos brilharam e as lágrimas já me escorriam pelo rosto, pensando que tinha recuperado a minha mulher, quando contra o que era de esperar, ela continua: – Mas já temos! Porque é que havemos de gastar dinheiro?!
Tomado pelo desespero, pergunto:
- Quem és tu Espírito mau? Abandona esse corpo e vai para o teu mundo!
A expressão na cara da Cristina altera-se, como quando faço migalhas em casa, e com uma voz grossa denuncia-se:
- Eu sou o Joaquim Gaspar, trisavô do Vitor!
Saio do IKEA, derrotado, com a Cristina possuída por um Demónio fortíssimo anti-despesa. Mas eu desconhecia o poder de um Centro Comercial mesmo para um Demónio forreta.
Ao dirigirmos-nos para o parque de estacionamento, ao passar pela última loja de decoração:
- Espera! Que coisas lindas! – diz ela.
Entrou e comprou meia dúzia de peças, três delas desnecessárias. O exorcismo tinha dado resultado. Dei-lhe um abraço forte, tinha recuperado a minha senhora e já no carro pede-me:
- Vamos ao IKEA, outra vez?
Feliz, por ouvir estas palavras, sorri.
- Amanhã, vimos de manhã, à tarde e à noite! – prometi-lhe.
- Boa! – responde-me com um abraço, como se não me visse há muito tempo.

Os espanhóis bem dizem, “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay!”